
A ASSUNÇÃO DA VIRGEM MARIA NOS ÍCONES DO ORIENTE
NO MUNDO DOS ÍCONESCULTURA


As imagens sagradas do Ocidente cristão costumam distinguir dois “momentos” na vida de Jesus Cristo: de um lado, a morte e descida à mansão dos mortos; do outro, a posterior ressurreição. Na Igreja do Oriente, ao contrário, o mergulho no Xeol já é a ressurreição [anástasis], pois a vitória sobre a morte se realiza exatamente por meio da morte. A mesma visão se expressa nos trabalhos iconográficos marianos: a “dormição” [koimésis] da Mãe de Deus já significa um despertar para o Reino de Deus.
Assim comentam Tomás Spidlik e Marko Ivan Rupnik, em seu livro “La Fede secondo le ícone” [Ed. Lipa Srl, Roma, 2000]: “Aqui observamos, em primeiro lugar, a realidade da morte: a alma sai do corpo. Mas não desce ao Xeol, aos infernos, como corresponderia à visão hebraica. Nem tampouco sobe ao céu, como desejaria a concepção grega platonizante. Ela é tomada nas mãos de Cristo: ‘As almas dos justos estão nas mãos de Deus’. (Sb 3,1.) Cristo traz nas mãos a alma de sua Mãe com a mesma ternura que ela mantinha nos braços o Deus encarnado em forma de criança”.
Os olhos de um cristão ocidental chegam a se espantar quando contemplam os ícones da “Dormição”, onde a “pequena alma” de Maria descansa no colo do Filho, após o “decurso de sua vida terrestre” (cf. Lumen Gentium,59; Redemptoris Mater, 41). Parece-nos imprevista inversão entre Mãe e Filho, mas apenas repôs em seus devidos lugares o Salvador e a Redimida. Por outro lado, é importante recordar que a escolha do termo “dormição” para o trânsito da Virgem Maria quer acentuar a ideia de que ela “adormeceu” e não sofreu a corrupção da morte antes de ser ressuscitada por seu Filho e elevada ao céu.
Conforme a recomendação que ela fizera, ao saber antecipadamente de sua próxima partida, manteve-se uma vela acesa diante de seu leito. Os elementos arquiteturais vistos nas margens representam a casa de Maria sobre a colina de Sião, em Jerusalém.
No terço superior do ícone, conhecido como “Dormição azul”, em função dos vários matizes de azul nele empregados, reaparece a Virgem envolvida em um medalhão, agora em corpo e alma, confiando seu cinto ao apóstolo Tomé, que chegara atrasado para os funerais. Ao lado, sobre nuvens, um cortejo solene de anjos e apóstolos.
Outra versão bastante conhecida [ver figura seguinte] é uma obra da primeira metade do século XVI, da escola de Pskov, 113 x 81cm, atualmente na Galeria Tretiakov, em Moscou. Logo abaixo do ícone, aparece um anjo que corta as mãos de um herege – o judeu Jefonias – que pretendia insultar a Virgem, revirando seu leito. Existe a probabilidade de que este pormenor episódico tenha sido incluído como indicativo da luta contra os movimentos heréticos que questionaram os dogmas do ensinamento cristão. E funciona como severa admoestação: é proibido aproximar-se dos mistérios da vida com aquela curiosidade e com os métodos típicos de conhecimento que adotamos para o mundo dos fenômenos, observam Spidlik e Rupnik.


Nesta versão da Dormição, os apóstolos parecem transportados por águias, na parte superior, provável alusão às palavras de São João Damasceno, paladino da luta contra os iconoclastas, que descrevia os apóstolos como semelhantes a nuvens e águias a serviço da Mãe de Deus.
Vale a pena recordar o ensinamento que se encontra na Constituição dogmática Lumen Gentium (nº 59), resumindo discretamente o conteúdo da fé católica ligado à Assunção de Maria:
“Finalmente, a Imaculada Virgem, preservada imune de toda mancha do pecado original, terminado o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória celeste. E para que mais plenamente estivesse conforme a seu Filho, Senhor dos Senhores e vencedor do pecado e da morte, foi exaltada pelo Senhor como Rainha do universo.”


Um tratamento estético intermediário pode ser notado em outro ícone da koimésis, este nascido em ambiente árabe [figura abaixo].
Este precioso trabalho é uma têmpera sobre madeira (96 x 73,5cm), da primeira metade do século XVIII, com especial delicadeza cromática e abundância de tons em pastel, atribuído a Yûhanna Ibn Abdel Masih. Ainda que fiel aos cânones bizantinos, os traços da cultura melquita (Síria e Líbano) deixaram suas marcas. Repetem-se os três estágios da construção: embaixo, o catafalco onde faz o corpo da Virgem; ao centro, o Cristo que acolhe a alma da Mãe, tendo sobre ele um querubim com seis asas e cercado por um grupo de apóstolos. À esquerda da Virgem, São Pedro agita o turíbulo de incenso. São João se inclina sobre a cabeça de Maria. À direita, São Paulo junto aos pés da Mãe de Deus, acompanhado por São Tiago, “irmão do Senhor”, e São Lucas, com o crânio tonsurado. No alto, repete-se a cena tradicional da entrega do cinturão de Maria ao apóstolo Tomé, que o levará consigo em seu ministério de evangelização na Índia.
Mesmo nascido em uma cultura árabe, este ícone apresenta um título em grego: a Dormição da Toda Santa [Panaghia], que acentua a doutrina sobre a concepção imaculada de Maria. É exatamente esta santidade plena da Mãe de Deus que leva a Igreja a considerá-la como “primícias” de nossa vida eterna em Deus. “O assim chamado ‘escatologismo’ das Igrejas orientais – comentam Spidlik e Rupnik – encontra aqui sua melhor expressão: a segunda Vinda de Cristo sobre a terra é a realidade do futuro que espera por nós. Mas, de qualquer modo, já é presente para os santos. Por isso, no Oriente, são venerados com tanta devoção os corpos dos santos que se conservaram incorruptos após a morte, relíquias que operam maravilhas. São um pequeno presságio da Jerusalém celeste ainda neste mundo. A Dormição da Mãe de Deus é uma firme expressão dessa esperança e penhor de segurança.”
De certa forma, a contemplação do ícone da Dormição vem responder àquela pergunta tão frequente no meio do povo católico: “Afinal, Nossa Senhora morreu ou não morreu?” Teria sido ela objeto de um privilégio especial de Deus, de modo a subir ao céu sem passar pela morte? Em seu livro: Maria, um espelho para a Igreja [Aparecida, SP, Ed. Santuário, 1992], Raniero Cantalamessa fala do clima reinante antes do Vaticano II em relação à devoção mariana:
“Antes, a categoria fundamental com a qual se explicava a grandeza de Nossa Senhora era a do ‘privilégio’ ou da isenção. Pensava-se que Maria tivesse sido isenta não só do pecado original e da corrupção (que são privilégios definidos pela Igreja com os dogmas da Imaculada e da Assunção); nessa linha ia-se muito além, até achar que Maria teria sido isenta das dores do parto, do cansaço, da dúvida, da tentação, da ignorância e, finalmente, o mais grave, também da morte.”
Se a morte era consequência do pecado, como teria morrido aquela que não pecou? “Dessa maneira – prossegue Cantalamessa – passava despercebido que, em vez de ‘associar’ Maria a Jesus, chegava-se a dissociá-la completamente dele que, mesmo sem ter pecado, para nosso proveito quis experimentar tudo isso, cansaço, dor, angústia, tentações e morte.”
As imagens da Dormição de Maria, ao mostrarem corpo e alma separados, deixam claro que a Igreja reconhece que também a Mãe de Deus passou pela experiência de todos os mortais, de modo que nenhum privilégio possa des-encarnar nossa maternal advogada, como sugerem tantas pinturas do Ocidente cristão, quando a humanidade de Maria de Nazaré submerge sob representações idealizadas e... falsas.


Mesmo nascido em uma cultura árabe, este ícone apresenta um título em grego: a Dormição da Toda Santa [Panaghia], que acentua a doutrina sobre a concepção imaculada de Maria. É exatamente esta santidade plena da Mãe de Deus que leva a Igreja a considerá-la como “primícias” de nossa vida eterna em Deus. “O assim chamado ‘escatologismo’ das Igrejas orientais – comentam Spidlik e Rupnik – encontra aqui sua melhor expressão: a segunda Vinda de Cristo sobre a terra é a realidade do futuro que espera por nós. Mas, de qualquer modo, já é presente para os santos. Por isso, no Oriente, são venerados com tanta devoção os corpos dos santos que se conservaram incorruptos após a morte, relíquias que operam maravilhas. São um pequeno presságio da Jerusalém celeste ainda neste mundo. A Dormição da Mãe de Deus é uma firme expressão dessa esperança e penhor de segurança.”
De certa forma, a contemplação do ícone da Dormição vem responder àquela pergunta tão frequente no meio do povo católico: “Afinal, Nossa Senhora morreu ou não morreu?” Teria sido ela objeto de um privilégio especial de Deus, de modo a subir ao céu sem passar pela morte? Em seu livro: Maria, um espelho para a Igreja [Aparecida, SP, Ed. Santuário, 1992], Raniero Cantalamessa fala do clima reinante antes do Vaticano II em relação à devoção mariana:
“Antes, a categoria fundamental com a qual se explicava a grandeza de Nossa Senhora era a do ‘privilégio’ ou da isenção. Pensava-se que Maria tivesse sido isenta não só do pecado original e da corrupção (que são privilégios definidos pela Igreja com os dogmas da Imaculada e da Assunção); nessa linha ia-se muito além, até achar que Maria teria sido isenta das dores do parto, do cansaço, da dúvida, da tentação, da ignorância e, finalmente, o mais grave, também da morte.”
Se a morte era consequência do pecado, como teria morrido aquela que não pecou? “Dessa maneira – prossegue Cantalamessa – passava despercebido que, em vez de ‘associar’ Maria a Jesus, chegava-se a dissociá-la completamente dele que, mesmo sem ter pecado, para nosso proveito quis experimentar tudo isso, cansaço, dor, angústia, tentações e morte.”
As imagens da Dormição de Maria, ao mostrarem corpo e alma separados, deixam claro que a Igreja reconhece que também a Mãe de Deus passou pela experiência de todos os mortais, de modo que nenhum privilégio possa des-encarnar nossa maternal advogada, como sugerem tantas pinturas do Ocidente cristão, quando a humanidade de Maria de Nazaré submerge sob representações idealizadas e... falsas.


Naturalmente, como tantos outros aspectos da nossa fé, a “Dormição” da Virgem é um mistério, mas faz brotar uma profunda esperança nos fiéis. A eternidade brota do amor. É o amor que faz eternas as coisas e as pessoas. Como poderia o Deus Amor deixar de eternizar a própria Mãe? Ora, também nós somos amados com um amor eterno. Há espaço também para nós no colo de Deus...


Curiosamente, é na Igreja do Ocidente que os artistas mais se dedicaram a pintar a Virgem Maria com a coroa de uma rainha, enquanto no Oriente os iconógrafos quase sempre a figuram com a cabeça coberta pelo maphorion (ou omophorion), o manto típico da mulher casada que se mostrava em público. Na arte grega, russa e bizantina, a “coroação” tem antes o sentido de “plenitude”, de algo que foi “coroado” por chegar à perfeição, algo bem mais próximo da imagem bíblica de Apocalipse 12.
(Tela de Rubens, 1622)
As Igrejas orientais celebram a Festa da Dormição no dia 15 de agosto (que corresponde à Assunção ou festa de Nossa Senhora da Glória, entre nós). Um tropário da liturgia bizantina para essa festa assim proclama: “Em vosso parto, guardastes a virgindade; em vossa dormição, não deixastes o mundo, ó Mãe de Deus; fostes juntar-vos à fonte da vida, vós que concebestes o Deus vivo e, por vossas orações, livrareis nossas almas da morte”.
Nas telas dos pintores barrocos e renascentistas [figura ao lado], onde o uso de sombras e volumes perde a delicadeza e a espiritualidade despojada dos ícones do Oriente, a Assunção é representada com Maria arremessada para o alto, atraindo os olhares estupefatos dos apóstolos abismados. Mais uma vez, a sobrecarga expressional acaba por velar o lado mais profundo do mistério, ali substituído pelo espetacular.
Este precioso trabalho é uma têmpera sobre madeira (96 x 73,5cm), da primeira metade do século XVIII, com especial delicadeza cromática e abundância de tons em pastel, atribuído a Yûhanna Ibn Abdel Masih. Ainda que fiel aos cânones bizantinos, os traços da cultura melquita (Síria e Líbano) deixaram suas marcas. Repetem-se os três estágios da construção: embaixo, o catafalco onde faz o corpo da Virgem; ao centro, o Cristo que acolhe a alma da Mãe, tendo sobre ele um querubim com seis asas e cercado por um grupo de apóstolos. À esquerda da Virgem, São Pedro agita o turíbulo de incenso. São João se inclina sobre a cabeça de Maria. À direita, São Paulo junto aos pés da Mãe de Deus, acompanhado por São Tiago, “irmão do Senhor”, e São Lucas, com o crânio tonsurado. No alto, repete-se a cena tradicional da entrega do cinturão de Maria ao apóstolo Tomé, que o levará consigo em seu ministério de evangelização na Índia.
Uma das versões do ícone da Dormição da Virgem fez parte da exposição de ícones russos patrocinada pela Fundação Pierre Gianadda, em Martigny, Suíça, em dezembro de 2000. Trata-se de uma obra do século XV [figura ao lado], nas medidas 113 x 88cm, pertencente à antiga coleção de I. S. Ostrooukov. Como os evangelhos nada dizem a respeito do fim da existência terrena da Mãe de Deus, os monges iconógrafos se inspiraram em textos apócrifos e nos sermões dos Padres da Igreja.
Na parte inferior do ícone, em posição central, vê-se a Virgem adormecida sobre um leito, com seu tradicional manto de cor marrom, a cor da argila do primeiro humano. Ela aparece cercada por apóstolos, santos e carpideiras.