
A ESPADA QUE SEPARA (Mt 10, 34-39)
Excerto de Ortodoxia, de G. K Chesterton
CULTURALITERATURAMT 10
amor deseja a personalidade; quer, portanto, a divisão. Faz parte do instinto do cristianismo se regozijar com o fato de que Deus fragmentou o universo em pequenos pedaços, pois são pedaços vivos. Dizer “amai-vos uns aos outros, pequeninos” em vez de ordenar a uma pessoa que ame a si mesma.
É esse o abismo intelectual entre o budismo e o cristianismo: para o budista ou teosofista, a personalidade é a queda do homem, enquanto para o cristão é a vontade de Deus, o sentido completo de sua ideia cósmica. A alma do mundo do teosofista pede ao homem que a ame somente para que o homem se lance em seu interior. Mas o centro divino do cristianismo realmente expulsou o homem para que este pudesse ama-lo. A divindade oriental é como um gigante que tivesse perdido sua perna ou sua mão e estivesse sempre a procurá-la; mas a onipotência cristã é como um gigante que, com uma estranha generosidade, cortou sua mão direita para que ela pudesse, por vontade própria, cumprimentá-lo. Voltamos à mesma nota incansável no tocante à natureza do cristianismo: todas as filosofias modernas são grilhões que atam e refreiam, mas o cristianismo é uma espada que separa e liberta.
Nenhuma outra filosofia mostra Deus se regozijando com a separação do universo em almas vivas. Mas de acordo com a ortodoxia cristã essa separação entre Deus e o homem é sagrada, pois é eterna. Para que um homem ame Deus é necessário que exista não somente um Deus para ser amado, mas também um homem que possa amá-lo. Todas aquelas vagas mentes teosóficas, para as quais o universo é um imenso caldeirão onde tudo se mistura, são exatamente as nesmas mentes que fogem instintivamente daquela afirmação retumbante do Evangelho, que diz que o Filho de Deus não veio para trazer a paz, mas uma espada que separa. O dito soa inteiramente verdadeiro até mesmo quando considerado como o que realmente é: a afirmação de que quem prega o amor verdadeiro está fadado a despertar o ódio. Isso é uma verdade tanto da autêntica fraternidade democrática quanto do amor divino; o amor simulado termina na tibieza e na filosofia medíocre; mas o amor verdadeiro sempre terminou na carnificina.
E ainda há uma outra e mais terrível verdade por trás do sentido óbvio das palavras de Nosso Senhor. O próprio Filho de Deus diz que Ele é uma espada que separa o irmão do irmão... Mas o Pai também foi uma espada, que nos primórdios obscuros separou o irmão do irmão, para que pudessem finalmente se amar.
Chesterton, K. G. Ortodoxia (pp. 167-169). Ed. Principis, 2020. 232p.