priest standing beside altar

A MORTE É MULHER?

ARTIGOSPR

Antônio Carlos Santini

Claro que não! A mulher é o berço da vida. Todos nós somos fecundados e gestados no seio materno. Por isso mesmo, a primeira mulher se chamou Eva (חַוָּה - Ḥawwāh), um nome cuja raiz hebraica significa "viver", "dar vida", pois ela foi a primeira mulher e mãe de todos os viventes, segundo a Bíblia.

Nos idiomas neolatinos, a palavra morte é do gênero feminino: “a” morte (ou la muerte, mort, morti, moarte). Já no grego (thánatos) e no alemão (der Tod), é um vocábulo do gênero masculino que designa a morte.

Seja como for, no imaginário popular, e morte é figurada como mulher. É “ela”. A “consoada”, “a indesejada das gentes”, no conhecido poema de Manuel Bandeira. A imaginação humana veste a morte de roupa preta como os antigos paramentos fúnebres das missas de Finados. ELA traz um alfanje nas mãos, pronta a ceifar a vida. Face cadavérica, naturalmente, e associada a corujas e morcegos, caçando almas na escuridão da noite.

No dia a dia, a palavra “morte” é coberta de silêncio, sufocada no inconsciente, trocada por “passamento, óbito, falecimento, trânsito, fim”, termos aparentemente mais abstratos e mais neutros. Morte é uma palavra a ser evitada a todo custo. Quando preparava o modelo de meu convite de casamento, em 1964, eu havia escolhido uma passagem do Cântico dos Cânticos: “O amor é mais forte do que a morte”. Um amigo padre viu o rascunho e me disse: “Não fica bem pôr a palavra morte em um convite de casamento...”

Ora, esta é a visão pagã e materialista, que não crê em nada após este tempo de vida orgânica. Para o cristão, a morte não é o fim. Nossas amigas beneditinas comunicam o falecimento de suas irmãs de Ordem com o termo “páscoa”, isto é, uma passagem para Deus.

Acho de grande lucidez o comentário do Catecismo da Igreja Católica sobre a morte: “A morte é o termo da vida terrestre. Nossas vidas são medidas pelo tempo, ao longo do qual passamos por mudanças, envelhecemos e, como acontece com todos os seres vivos da terra, a morte aparece como o fim normal da vida. Este aspecto da morte marca nossas vidas com um caráter de urgência: a lembrança de nossa mortalidade serve também para recordar-nos de que temos um tempo limitado para realizar nossa vida” (CIC, 1007).

Daí o lema dos monges: “Memento mori!” Lembra-te de que irás morrer! Esta lembrança deve relativizar todos os bens temporais e orientar-nos para os bens eternos, buscados e experimentados desde já, de modo parcial, e em definitivo além da morte.

Mas a morte não existe.

Sei muito bem que dificilmente deixarão de encarar a morte sob uma imagem antropomórfica: ela caminha pela terra, está de olho em nós, tem braços longos... Até o apóstolo achou que podia conversar com ela: “Ó morte, onde está a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" (1Cor 15,55) No fundo, porém, Paulo devia saber que ela não existe...

Sim, não “existe” um ser chamado morte. Não é possível jogar xadrez com ele. O que chamamos de morte é um momento, um limiar entre a história e a eternidade, entre o efêmero e o definitivo. Mas não se trata de uma “pessoa” como os poetas românticos sempre a trataram. Daí, não há como ter medo de algo que não existe. Ou teríamos medo de entrar em um face a face com Deus, um Pai cheio de amor?

Ao contrário, a expectativa desse encontro com Deus deve tornar realmente incômodo este tempo de aquém-túmulo, a tal ponto que a mística espanhola iria gemer em seus poemas:

“Vivo sin vivir en mí
y tan alta vida espero
que muero porque no muero.”

A vida é mulher. A morte não existe. E o Deus Criador é o Deus da vida, à espera de nosso encontro definitivo, quando voltaremos à nossa Fonte, para uma existência sem pranto, nem luto, nem dor...

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