A RESSURREIÇÃO DE CRISTO NOS ÍCONES DO ORIENTE

NO MUNDO DOS ÍCONESCULTURAMT 28MC 15JO 20

Antônio Carlos Santini

7/7/202410 min ler

Foi do Papa Paulo VI a lembrança de que a Igreja precisa respirar com os “dois pulmões”, isto é, reunir as tradições e a vivência de Roma aos tesouros inestimáveis das Igrejas orientais. Desde o Concílio Vaticano II, cresce o diálogo e a cooperação entre o Leste e o Oeste cristão, sendo o interesse pela iconografia do Oriente um dos sinais desta aproximação. Já afirmava o mesmo Concílio: “A reintegração da unidade entre todos os cristãos é um dos objetivos principais do Sagrado Sínodo Ecumênico Vaticano Segundo”. (UR, 1.)

As visíveis diferenças na ação litúrgica e em certos enfoques teológicos, longe de serem razão de contraste e dissensão, oferecem visões complementares que enriquecem e reavivam os dois lados. Ao mesmo tempo, o martírio e a perseguição experimentados pelas outras Igrejas cristãs, como o atual sofrimento da Igreja copta, despertam em todos nós sentimentos da mais profunda solidariedade.

A contemplação dos ícones do Oriente, preciosa herança acumulada ao longo dos séculos, mesmo durante as décadas do ateísmo comunista, oferece ao olhar do Ocidente uma injeção de vida nova e de dinamismo espiritual. Como ensina o Vaticano II, “conhecer, venerar, conservar e fomentar o riquíssimo patrimônio litúrgico e espiritual dos Orientais é de máxima importância para guardar fielmente a plenitude da tradição cristã e realizar a reconciliação dos cristãos orientais e ocidentais”. (UR, 15.)

O Inferno vencido

Na liturgia ortodoxa, o canto das Vésperas da Ressurreição faz o anúncio da vitória de Cristo: “Neste dia, o inferno se lamenta e grita: ‘Teria sido melhor se eu tivesse acolhido aquele que nasceu de Maria. Ele pôs fim ao meu poder, ele quebrou minhas portas de bronze’. Glória à tua cruz e à tua Ressurreição, Senhor! O Crucificado esvazia todos os túmulos, foi vencido o poder da morte. Senhor, glória à tua cruz e à tua Ressurreição!”

Diferentemente da visão típica do Ocidente, cuja arte sacra prefere pintar a ressurreição de Jesus com a imagem da saída do túmulo – os guardas fulminados por terra e Cristo pairando no ar, estandarte da vitória nas mãos –, os iconógrafos do Oriente dão ênfase à descida ao Xeol, onde o Ressuscitado mergulha para libertar e reerguer a humanidade. Ao contrário de sair da caverna tumular, Cristo se aprofunda nela ainda mais, em busca dos traços de Adão.

Datado de 1310, um afresco [ver acima] na igreja do Redentor de Chora, Istambul (hoje Turquia), reúne os traços dominantes da “anástasis” [gr. Ressurreição], muitas vezes impropriamente denominado a “descida aos infernos”. A impressão é de um grande cataclismo que revolve até os estratos geológicos do planeta, trazendo à luz os túmulos de Adão (à esquerda, de barbas brancas) e de Eva (com vestes vermelhas, símbolo do amor e da vida doada). Tomando-os pelo pulso (exatamente o ponto anatômico onde os médicos medem a pulsação da vida). Cisto arranca os primeiros pais da morte e os integra na redoma luminosa que envolve o próprio Ressuscitado. No alto, à esquerda, as testemunhas da Primeira Aliança, que há séculos esperavam pelo Redentor; à direita, João Batista e os apóstolos, as testemunhas da Nova Aliança. Logo aos pés de Cristo, veem-se as portas do inferno já arrombadas pelo Vencedor.

Como reflete Paul Evdokimov[1], “semelhante aos homens, semelhante ao estado de Adão antes da queda, a humanidade de Cristo, sem ser mortal, não possuía ainda a potência efetiva da imortalidade. Mas ao aceitar livremente a sua própria morte, Cristo assume até a mortalidade; ele morre com todos os homens, mas a humanidade inteira se reencontra também na morte do Cristo que sofre em sua Paixão o sofrimento de todos: ‘ele experimentou a morte em favor de todos’”. (Cf. Hb 2,9.)

Em comentário de Tomas Spidlik e Marko Ivan Rupnik, “a grandeza da ressurreição de Cristo consiste no fato de que Ele entra no império do príncipe das trevas que mantém na escravidão Adão e sua descendência. Depois da fuga de Caim, o homem refugiou-se na morte, convencido subconscientemente da antiga condenação, para se esconder de Deus, na verdade para fugir dele, mesmo que fosse preciso refugiar-se no túmulo”.[2]

É o que se vê na “anástasis” do afresco [acima] datado de 1537, localizado no Mosteiro de Moldovitsa (Moldávia, atual Romênia). No alto, a cruz de Cristo reina soberana, erguida por três anjos, em clara alusão à ação trinitária na Redenção. Na parte inferior, a grande mancha escura figura a mansão dos mortos, o Xeol, onde os demônios jazem por terra. É hora de cantar como Paulo: “Ó morte, onde está a tua vitória?” (1Cor 15,55.)

O aspecto poético da cena inspirou a Santo Efrém, o Sírio, toda uma série de cânticos sobre a presença de Cristo no reino das sombras, às vezes em forma dialogada, com a Morte e Satã personificados. Esta “descida” do Ressuscitado não se reduz ao espaço do Xeol, mas se estende a todo o espaço-tempo, afora tornado capaz de gozar os frutos da Encarnação.

É fácil perceber no ícone que o movimento de Cristo é ascensional, ao reerguer Adão e Eva para o espaço dos vivos. É nítida a oposição cromática entre o ouro dominante (reino da Luz divina) e a sombra dos “infernos”. A Igreja Ortodoxa sempre realçou o simbolismo da Luz, com profundas marcas na iconografia da Natividade, da Transfiguração e da Ressurreição. No centro do ícone, Cristo irradia a luz em todas as direções, envolvido em um medalhão formado pelas esferas celestes salpicadas de estrelas, que são atravessadas pela irradiação do Senhor, a luz primordial que antecede o primeiro dia da Criação (cf. Jo 1,1-5.)

Outra “anástasis”, datada do século XV, hoje exposta no Museu de São Petersburgo [abaixo], é uma têmpera de ovo sobre gesso, belíssimo exemplo da arte ortodoxa russa. Nesta versão, o iconógrafo mostra Adão erguido por Cristo do Xeol, enquanto Eva, sempre de vermelho, estende as mãos para o Ressuscitado, em um gesto de adesão à salvação oferecida. É notável a centralidade da figura de Cristo, que atrai todos os olhares e os movimentos das mãos, enquanto as próprias montanhas se debruçam em sua direção. No alto, dois anjos portam os instrumentos da Paixão, para recordar o alto preço de nossa salvação.

A visita de Cristo à mansão dos mortos é biblicamente sustentada pela 1ª Carta de Pedro: “[Cristo] sofreu a morte, na existência humana, mas recebeu vida nova no Espírito. No Espírito, ele foi também pregar aos espíritos na prisão, aos que haviam sido desobedientes outrora, quando Deus usava de paciência...” (1Pd 3,18b-20.) E ainda: “Mas eles terão de prestar contas àquele que está pronto para julgar os vivos e os mortos, Pois também aos mortos foi anunciada a Boa Nova, para que, mesmo julgados à maneira humana na carne, eles pudessem viver pelo Espírito, conforme o desejo de Deus”, (1Pd 4,5-6.)

Testemunhas da Ressurreição

No universo da piedade popular do Oriente, os ícones logo se tornaram uma espécie de companheiro de caminhada, na intenção de prolongar para o ambiente doméstico a experiência religiosa vivenciada na liturgia oficial. Como observa Kondakov, “quando o retrato de um santo se torna ícone, ele assume o estatuto de um objeto de devoção, mudo companheiro na fé ao qual o povo dirigia suas preces, como a confiar-lhe suas esperanças. Rezando, os fiéis traçam o sinal-da-cruz sobre seus peitos e abraçam o ícone, o que então se constituía em prática regular”.[3] Foram as comunidades monásticas a principal fonte de produção de ícones, oferecidos aos peregrinos em formato reduzido, por razões de custo e de comodidade.

Na Igreja Ortodoxa, o 2º Domingo da Páscoa é conhecido como “Domingo das Mirróforas”, termo de origem grega que designa as mulheres portadoras de aromas que foram ao túmulo de Jesus no alvorecer da Ressurreição (cf. Mc 15,43 – 16,8). Desde os primeiros séculos, a iconografia cristã desenvolveu variadas representações da Ressurreição de Cristo, entre as quais aquela registrada nas catacumbas de Priscila e de Calixto, com a imagem de um monstro marinho vomitando o profeta Jonas – aliás, o “sinal” exclusivo prometido por Jesus nos evangelhos (cf. Lc 11,29). A arte sacra do Oriente cristão respeita o silêncio dos evangelhos sobre o momento da ressurreição e se recusa a “imaginar” (dar imagem a) esta cena, inacessível até mesmo aos anjos: “Teus anjos incorpóreos não perceberam Tua Ressurreição” (Estiquério de Matinas, 5º tom). Daí, a procura de outras representações.

Já no século III, segundo afirmam Ouspensky e Lossky[4], surge o tema iconográfico histórico apoiado nas narrativas evangélicas sobre a aparição do anjo às mirróforas, junto ao Santo Sepulcro. É o caso concreto da igreja de Duras Europos, datada de 232 d.C. Uma coluna da Catedral de S. Marcos, em Veneza, que remonta ao século VI, inclui essa representação.

Na tradição das Igrejas do Oriente, variando de um ícone a outro, as sete mulheres mirróforas são as seguintes: Maria de Magdala (a primeira a chegar), Maria de Tiago (mulher de Cléofas, mãe de Tiago Menor e de José, irmão da Virgem Maria), Salomé (mulher de Zebedeu e mãe dos apóstolos Tiago Maior e João), Joana (mulher de Cusa), Suzana (citada em Lc 8,3), e Marta e Maria (irmãs de Lázaro). A elas teria sido confiada a primeira notícia da ressurreição, como uma espécie de recompensa por sus firmeza, acompanhando Jesus no Calcário, quando fugiram todos os homens, exceto João.

Os ícones das “mirróforas” costumam mostrar os mesmos detalhes registrados nas narrativas evangélicas: a presença do anjo, as bandagens que haviam envolvido o corpo de Jesus e, em separado, o pano que cobrira a sua cabeça.

O exemplar que contemplamos [acima] pertence à conhecida escola iconográfica russa de Novgorod. Medindo 103cm x 78cm, data do século XVI. As três mulheres são Madalena (com vestes vermelhas), Maria de Tiago e Salomé. No fundo, as torres e muralhas de Jerusalém, lembrando o costume local de sepultar os mortos fora do recinto da cidade. Quando chegam com aromas para ungir o corpo de Jesus, encontram um cenário inesperado: sentado, tendo na mão esquerda o bastão do peregrino, um anjo aponta com a mão direita para o túmulo, a dizer: “Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito”. (Mt 28,6.) Outro anjo, à esquerda, reforça o gesto, tendo na mão esquerda um rolo, que acena para as Escrituras, ora cumpridas com a Ressurreição de Cristo.

“Não me retenhas!”

Segundo o Evangelho de São João (cf. 20,11-17), Maria Madalena chorava do lado de fora do túmulo cavado na rocha. Olhando para o interior, viu dois anjos que lhe perguntaram o motivo de suas lágrimas. Enquanto lamentava o desaparecimento do corpo de Jesus, ela se volta para trás e vê Jesus, em pé, mas não o reconhece e julga ser o jardineiro. Quando Jesus pronuncia o nome dela: “Maria!”, ela o reconhece e chama de forma afetuosa: “Rabbuni”, uma espécie de diminutivo afetivo para Rabbi [mestre].

“E se Cristo não ressuscitou,

vazia é a nossa pregação,

vazia também é a nossa fé.”

(1Cor 15,14.)

Este ícone [acima], originário de Creta, no século XIV, é conhecido pela expressão latina “noli me tangere” [não me segures, pois ainda não subi para meu Pai”. As mãos de Jesus ainda trazem as marcas dos cravos. O rolo em sua mão esquerda o identifica como o Verbo (Palavra) de Deus. Madalena se ajoelha, em adoração. No centro, vê-se a árvore da Vida, uma promessa reservada desde o Éden primitivo. No cavo da montanha, o espaço sombrio da gruta, com a inscrição grega “túmulo de Cristo”. No solo, uma autêntica floração de primavera, pois a vida vencera a morte.

Mas fica bem visível, do lado de fora, o túmulo onde permanece intacto, sem ter sido desmanchado, o “casulo” que envolvera o corpo de Jesus, formado pelas bandagens ou faixas de linho mergulhadas em aproximadamente 30kg de mirra líquida e aloés em pó (cf. Jo 19,39-40). A imagem expressa a crença em uma espécie de “passagem” do Ressuscitado através do denso envoltório. Foi isto que João viu... e creu (cf. Jo 20,8).

Conforme realçam Ouspensky e Lossky[5], “este detalhe, à primeira vista insignificante, sublinha o caráter indizível do que havia acontecido. Foi precisamente ao ver as bandagens mortuárias que “’o outro discípulo viu e creu’. O fato de que elas haviam permanecido no mesmo estado em que tinham envolvido o corpo do Sepultado, isto é, enroladas, era um testemunho irrefutável de que o corpo que elas haviam contido não tinha sido retirado, mas as deixara de um modo inimaginável”.

[1] L’Art de l’Icône, Théologie de la Beauté. Desclée de Brouwer, Paris, 1972, p. 265.

[2] La fede secondo le Icone. Lipa Ed. Roma, 2000, p. 57

[3] Kondakov, Nikodim Pavlovich, in “Icônes”, Parkstone Internacional, Nova Iorque, 2008, p. 28.

[4] Ouspensky, Léonid e Lossky, Vladimir, in “Le Sens des Icônes", Ed. Du Cerf, Paris, 2003, p. 169-170.

[5] Idem, p. 174.