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QUANDO PERDOAR É O MAIOR ATO DE FÉ (1 Sm; Rm 12)

ARTIGOSORAÇÃO E SANTIFICAÇÃOPRRM 121&2SAMUEL

Rafael Andrade Filho (1978-)

12/21/2025

“A vingança pertence a mim” (Rm 12,19): esta afirmação, que Paulo traduz do aramaico Targum Neofiti do Deuteronômio (Dt 32:35), resume de forma admirável a pedagogia divina já revelada no Antigo Testamento e que ganha profundidade máxima em Cristo. Em 1Sm 18–26, especialmente nos episódios da perseguição de Saul a Davi e no encontro com Abigail, vemos concretamente o que significa crer que a justiça pertence ao Senhor. A Palavra nos ensina não apenas a não retribuir o mal com o mal, mas a ir além: responder ao mal com o bem, com a misericórdia, perdoar e deixar que o próprio Deus bondoso e justo faça justiça a seu tempo. A falta de perdão, em última análise, revela uma falta de fé concreta nesse Deus vivo e justo.

Davi perseguido: a tentação da vingança

Nos capítulos 18 a 26 de 1 Samuel, contemplamos um drama humano e espiritual: Saul, tomado de ciúme e medo, persegue Davi (cf. 1Sm 18,8-12; 19–26). Humanamente, Davi teria todos os “motivos” para se defender violentamente, para “acertar as contas” com Saul. No entanto, a Escritura mostra que o servo de Deus é continuamente provado na fé: confiará ele na própria mão ou na mão do Senhor?

O ponto culminante aparece em 1Sm 24, quando Davi tem Saul ao seu alcance, indefeso, na caverna de Engadi. Seus homens o incentivam a matar o rei, vendo nisso uma oportunidade providencial. Mas Davi responde não com a lógica da vingança, e sim com a lógica da fé:

“O Senhor te entregou hoje em minhas mãos, na caverna, e alguns me disseram que te matasse; mas poupei-te, pois disse: ‘Não levantarei a mão contra o ungido do Senhor” (1Sm 24,7)

Abigail: a sabedoria que impede a vingança (1Sm 25)

O episódio de Abigail (1Sm 25) é uma das cenas mais luminosas desse conjunto. Nabal, homem insensato e duro de coração, retribui com ingratidão e desprezo a proteção que Davi e seus homens haviam dado aos seus pastores e rebanhos (cf. 1Sm 25,7-11). Davi, ferido em sua honra, decide fazer justiça pelas próprias mãos e marcha para destruir Nabal e sua casa (cf. 1Sm 25,13.21-22).

É então que entra em cena Abigail, mulher sensata e temente a Deus. Ela corre ao encontro de Davi, leva-lhe presentes, reconhece o erro de seu marido e se lança à intercessão. Suas palavras e sua atitude tornam-se canal da graça de Deus para impedir o sangue inocente e a vingança precipitada:

“Agora, meu senhor, pela vida do Senhor e pela tua própria vida, é o Senhor que te impede de derramar sangue e de fazer justiça com a tua própria mão.” (1Sm 25,26)

Abigail recorda a Davi quem é Deus, quem é ele diante de Deus, e qual é a vocação de Davi: não ser um vingador ensandecido, mas um rei segundo o coração de Deus. Resultado: Davi é interiormente convertido, recua de seu propósito de vingança e reconhece que foi o Senhor quem o deteve, por meio de Abigail:

“Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que hoje te enviou ao meu encontro! Bendita seja a tua prudência e bendita sejas tu, que hoje me impediste de derramar sangue e de fazer justiça com a minha própria mão!” (1Sm 25,32-33)

Logo depois, sem que Davi mova um dedo, o próprio Deus intervém: Nabal é ferido e morre (cf. 1Sm 25,37-38). Aqui se vê claramente o princípio: Davi foi impedido de retribuir o mal com o mal; ao invés disso, refreou-se, confiou, teve fé. Abigail é o instrumento que impede a vingança e salva Davi de manchar-se com sangue, preparando-o para reinar com coração limpo.

Pagar o mal com o bem: fé prática na justiça de Deus

Em 1Sm 24,16-18 Saul, poupado por David, reconhece, comovido pela misericórdia:

“E sucedeu que, acabando Davi de falar... Saul levantou a sua voz e chorou. E disse a Davi: Mais justo és do que eu; pois tu me recompensaste com bem, e eu te recompensei com mal. E tu mostraste hoje que procedeste bem para comigo, pois o Senhor me tinha posto em tuas mãos, e tu não me mataste."

Davi fez bem a quem lhe fazia mal. Isso antecipa a lógica plena do Novo Testamento: não apenas “não vingar-se”, mas “pagar o mal com o bem”, como Paulo exorta:

“Não retribuais a ninguém o mal com o mal; aplicai-vos a fazer o bem diante de todos os homens. (…) Não vos vingueis a vós mesmos, caríssimos, mas deixai agir a ira [de Deus]. Pois está escrito: ‘A mim a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor’. (…) Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem.” (Rm 12,17.19.2)

Na prática, isso significa: se eu creio que Deus é justo, não preciso “fazer justiça” destruindo o outro. Posso perdoar, posso fazer o bem a quem me fez o mal, posso entregar-lhe a Deus. Pagar o mal com o bem não é ingenuidade, mas fé viva: é crer que Deus vê, sabe, julga e age.

Por isso, a falta de perdão, em última análise, é uma falta de fé. Quando não perdoamos, no fundo estamos dizendo: “Não confio que Deus fará justiça; eu mesmo preciso fazê-la”. A mágoa guardada, o ressentimento alimentado, a vingança desejada são sinais de que o coração ainda não descansou na justiça de Deus.

A plenitude em Cristo: julgados pela fé que confia

Em Jesus, essa revelação da justiça divina atinge o cume. Deus não apenas diz: “A mim a vingança”, mas mostra que Sua “vingança” contra o pecado passa pela cruz, onde o próprio Filho assume em si o mal do mundo e responde com amor. A Palavra nos diz:

“Com efeito, Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem Nele crê não é julgado; quem não crê já está julgado, porque não creu no nome do Filho único de Deus.” (Jo 3,16-18)

O critério último do julgamento é a fé: não uma mera aceitação intelectual, mas a confiança real na pessoa divina de Jesus Cristo. Crer em Jesus é confiar que Ele é o Senhor da história, o justo juiz, Aquele em cujas mãos posso entregar as injustiças que sofro. Quem crê assim, perdoa; quem não crê, agarra-se à vingança.

Se “quem nele crê não é julgado” e “quem não crê já está julgado”, então nossa falta de fé – que se manifesta também na recusa em perdoar – será julgada. Dizer “não perdoo” é, no fundo, dizer: “não confio”. Mas Jesus, do alto da cruz, reza: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34 – BJ). Ele, inocente, responde ao mal com o bem supremo, abrindo-nos o caminho da vida eterna.

Felizes os misericordiosos...

Ao longo de sua vida, Davi não foi apenas alguém que recebeu ofensas; ele mesmo foi grande pecador. Contudo, aquele que tantas vezes foi misericordioso – poupando Saul (cf. 1Sm 24; 26) e deixando Deus fazer justiça no caso de Nabal (cf. 1Sm 25,32-34.37-38) – também experimentou, ele próprio, a misericórdia divina.

Quando comete o grave pecado de adultério com Betsabéia e o homicídio de Urias, o profeta Natã o confronta (2Sm 12,1-12). Davi reconhece sua culpa:

“Pequei contra o Senhor.” E imediatamente ouve: “Também o Senhor perdoa o teu pecado: tu não morrerás.” (2Sm 12,13).

O mesmo Davi que poupara a vida de Saul suplica então pela própria vida e encontra misericórdia.

O Salmo 51 (50), tradicionalmente ligado a esse episódio, mostra como ele se coloca diante de Deus:

“Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua benevolência,
e, segundo a grandeza da tua compaixão, apaga a minha transgressão.” (Sl 51[50],3)

Assim se confirma na história de Davi a lógica evangélica:

“Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” (Mt 5,7)

Aquele que, por fé, renuncia à vingança e escolhe a misericórdia, abre espaço para que a misericórdia de Deus também o alcance quando ele próprio cai. Em Davi se cumpre o princípio de que “o juízo será sem misericórdia para aquele que não praticou misericórdia; mas a misericórdia triunfa sobre o juízo”  (Tg 2,13)

Confiar, perdoar, entregar a justiça a Deus

À luz de 1Sm 18–26, de Rm 12,19 e do Evangelho, somos chamados a um caminho claro:

  • Como Davi com Saul, não levantar a mão contra o outro, mesmo quando temos “motivo” humano para fazê-lo.

  • Como Davi diante de Abigail, deixar-nos deter pela Palavra de Deus antes de cometer o mal.

  • Como Abigail, ser instrumentos de paz, impedindo que outros se afundem na vingança.

  • Como discípulos de Cristo, pagar o mal com o bem e entregar a justiça nas mãos do Senhor.

“A mim a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12,19). Crer nisso é descansar o coração em Deus. Perdoar não é negar a gravidade do mal sofrido, mas reconhecê-lo diante de Deus e deixá-lo julgar. É um ato profundo de fé: “Senhor, tu vês, tu sabes, tu julgarás. Eu escolho amar, perdoar e fazer o bem em teu nome”.

Que cada um de nós, diante das feridas e injustiças da vida, possa dizer com sinceridade: “Senhor, eu confio em ti. Renuncio à vingança, perdoo em teu nome e entrego a justiça a tuas mãos”. E aquele que deu o Filho único por amor a nós será fiel: sustentará nosso coração ferido, julgará com justiça e nos conduzirá à vida eterna prometida àqueles que nele creem. Confiemos, perdoemos e deixemos que Ele seja, de fato, o Senhor e Juiz de nossas histórias.