
ARTE: DIVERSÃO OU CONVERSÃO?
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atar o tempo? Ou viver o eterno? Para que serve a arte? O artista de sucesso é quem revela os mistérios do coração do homem ou aquele que vende mais cópias de suas produções? Ainda se percebe a diferença entre os mosaicos de Ravena e a lata de sopa Campbell pintada por Andy Warhol? Ou as lentes do século XXI passeiam com a mesma indiferença sobre os dois “produtos”?
Neste início de milênio – na verdade, desde o pós-guerra dos anos 40 – chama-se de “arte” cada vez mais um tipo de produto que visa acima de tudo ao entretenimento [traduzindo o inglês entertainement]. À medida que as máquinas substituem o trabalho do homem e lhe dão tempo de sobra, abre-se espaço (ou mercado?) para uma nova atividade: matar o tempo. Existe uma ansiedade para fazer “programas” que permitam preencher o tempo; que vamos fazer neste fim de semana? É que um tempo esvaziado de significado passa a ser uma tortura, uma noite que não passa, pois a natureza tem horror ao vácuo. E se o tempo fica vazio, acaba invadido por fantasmas, por demônios ou por ídolos. Estes fenômenos de nossa época se juntam para reforçar o processo: a solidão que torna as noites insuportáveis, a angústia que fabrica insônias, o crescente vazio de sentido para a existência.
Eis o pano de fundo à espera dos atores que virão distrair as massas (ou já estão distraídas?) do essencial. Incapazes de um olhar contemplativo, as sociedades do Ocidente, e mesmo as fatias já ocidentalizadas do Oriente, fixam o olhar vazio nas telas da TV ou do celular, cuja velocidade de exposição, seu flipping vertiginoso, torna impossível toda visada de profundidade e qualquer pesquisa do eterno. Tal como nas feiras medievais, os saltimbancos e pelotiqueiros ganharam espaço no gosto da burguesia nascente, hoje uma nova indústria encontra seu filão produtivo na necessidade de divertir as massas. Rapidamente consumidos, os artistas e suas obras cederam aos impulsos da moda. Como tudo o mais no sistema, também a arte é one way. Usar e descartar.
Critérios para a arte
Crítico atento do mundo ocidental, o então Cardeal de Viena, Cristoph Schönborn[1], afirma que a moda não é necessariamente uma espécie de constrangimento. Mas precisamos de critérios responsáveis que se apresentem como alternativas às tendências da moda. O primeiro deles consiste em encorajar tudo aquilo que estimula nossa capacidade de percepção, de observação exata, de contemplação. Exatamente o contrário do que se experimenta com a vertiginosa sucessão de imagens de um clip de TV. Aqui, não há tempo para o “maravilhamento”. Já a arte (bem como a religião) exige tempo para a concentração do espírito e dos sentidos.
Um segundo critério se identifica com o savoir-faire do artista-artesão, igualmente fruto de um longo exercício no tempo, de habilidades adquiridas com a prática e com o domínio de instrumentos e ferramentas, ao lado do necessário mergulho na tradição para a absorção de modelos da herança clássica. Em tempos de pressa – o mercado não pode esperar! – alguns borrões podem passar por impressionismo ou expressionismo...
O terceiro critério propõe que a qualidade tenha mais valor que a atualidade. Deixar de lado tudo o que é secundário e/ou parasitário para concentrar-se naquilo que expressa a experiência pessoal do humano. Pena que em nossas escolas as obras clássicas tenham sido substituídas por “resumos para concursos”.
Outro critério para a elaboração artística é a capacidade de despertar no espectador uma reviravolta profunda e purificadora, autêntica catharsis, sem confundir “emoção” com “choque” ou “escândalo”. Como observa Schönborn, “a beleza não é da ordem do simples prazer estético”. E cita a reação do poeta Rilke diante do Torso de Apolo: “Tu deves mudar de vida”. Ou o famoso preceito do cineasta russo Tarkovski: “A finalidade da arte consiste em preparar o homem para sua morte, em fazer que ele se sinta tocado no mais íntimo de si mesmo”.


Uma crise religiosa
Já nos anos 60, Thomas Merton[3] anotara o esvaziamento de sentido do homem moderno. “Numa era de ciência e tecnologia, em que o homem se sente confuso e desorientado pela fabulosa versatilidade das máquinas por ele criadas, vivemos a cada momento precipitados fora de nós mesmos. Estamos interiormente vazios, espiritualmente perdidos, procurando, a todo custo, esquecer-nos de nosso próprio vazio, e prontos a nos alienarmos completamente em nome de uma “causa” qualquer que surja. Numa época dessas, parece absurdo falar em contemplação.”


O quinto critério propõe que a verdade não seja trocada pela sinceridade. “O fato de mostrar tudo, revelar tudo, pôr tudo a nu, não significa necessariamente veracidade.”[2] Assim, o medo da morte expresso na famosa tela de Goya [Tres de Mayo, museu do Prado, Madri] que mostra o fuzilamento dos revoltosos, é absolutamente verdadeira, ainda que não ceda nada ao sensacionalismo e não fira o pudor. Schönborn ainda fala de uma arte que estimule a virtude, reunindo o belo e o verdadeiro ao bom, ao mesmo tempo que se lamenta da atual suspeição generalizada contra o “homem bom”, em nome de pretensa reação contra o farisaísmo de ontem. Mas o ponto central de suas propostas gira sobre a preferência pela “contemplação”, a concentração do olhar, em lugar da trepidação da sociedade dos homens apressados a viver tudo”. E viver já. Como não podia deixar de ser, os reflexos dessa realidade irradiam-se também no âmbito religioso.
(Foto: A. C. Santini)
Em suma, toda arte se refere à Beleza. Ou emite suas centelhas luminosas, revelando-as, ou chora a escuridão de sua ausência. E ninguém foi mais claro que Maurice Zundel, teólogo, escritor, místico e poeta, ao afirmar: “Deus é a origem de toda beleza... O essencial está em se recolher. O essencial é escutar. O essencial é se maravilhar; pois quando nos maravilhamos, quando admiramos, necessariamente nos esquecemos de nós mesmos, ficamos suspensos na Beleza de Deus, rejubilamo-nos com sua presença e nos perdemos em seu Amor”.
Ninguém deve admirar-se, pois, de que uma renovação no campo litúrgico seja praticamente impossível sem a simultânea renovação no campo da arte. Como sempre. Culto e cultura caminharão de braços dados...
[1] Le Defi du Christianisme, Paris, Cerf, p. 111.
[2] Idem, p. 114.
[3] Poesia e Contemplação, Rio de Janeiro, AGIR, p. 187.
[4] L’Art de l’Icône: Théologie de la Beauté, Desclée de Brouwer, 1972, p. 187ss.
[5] Op. Cit., p. 188-189.
[6] L’art, signe de résurrection, in “Tychique" nº 80/81, jul/set 1989, Lyon.
[7] Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 44-45.
[8] Confissões (X, 6), São Paulo, Paulinas, 1984.


Passados cinquenta e cinco anos da edição inglesa de seu livro, Merton permanece profético. Os mesmos que afirmavam que “tempo é dinheiro”, que “não há tempo a perder”, são aqueles que andaram celebrando uma civilização do lazer, onde o sedentário passa longas horas mesmerizado diante da TV e seus clones portáteis. Mas a mensagem dos programas não preencheu o vazio das almas. Ou... não havia mensagem?
Em seu estudo clássico sobre a linguagem dos ícones, Paul Evdokimov[1] assevera: “A crise atual da arte sacra não é estética, mas religiosa. Se existe ainda, em nossos dias, um fundamentalismo teológico que faz da Bíblia um Corão, e, na outra extremidade, um cientificismo exegético que a demitiza ao extremo, trata-se de uma crise de crescimento do mundo contemporâneo, com a sensibilidade ainda à procura de seu equilíbrio. Nos dois casos, o iconoclasmo generalizado, a recusa do ícone, vem da progressiva perda do simbolismo litúrgico e do abandono da visão patrística”.
Evdokimov pensa em uma “linguagem” que não seja apenas expressão de estesia, mas capaz de revelar o homem “real” – o que inclui sua vida no Espírito – e, muito mais, a sua transfiguração. O esteticismo leva à perda do vínculo orgânico entre conteúdo e forma. Tal como ocorre no conhecimento, também a arte se separa da contemplação mística e, de ruptura em ruptura, mergulha no formalismo do nada.
Creio que sirva de exemplo dessa decadência expressional o Crucificado de um templo católico (hoje demolido) no bairro Venda Nova, em Belo Horizonte. Sobre o altar, vi com espanto a imagem de Cristo produzida por meio da aglomeração de peças de sucata metálica, tendo como resultado um objeto de horror que inspira medo e repulsa no espectador. Esquecido o lado pedagógico das imagens sacras, ninguém pensou no efeito daquele “monstrengo” sobre os olhares e as mentes infantis... Ou seria uma parábola sobre determinado processo de ruptura e demolição provocado no interior da Igreja a partir dos anos 60?
Em busca da Fonte
Podemos voltar à reflexão de Thomas Merton[2], quando fala do contemplativo não como um iogue sentado sobre os calcanhares, mas como alguém à procura da Fonte essencial. “A contemplação relaciona-se com a arte, o culto, a caridade. Todas essas coisas se estendem, pela intuição e a auto dedicação, a domínios que transcendem a conduta material da vida cotidiana. Ou melhor, em meio à vida ordinária de cada dia, elas procuram e encontram um sentido novo e transcendente. E, pela força desse sentido, elas transfiguram a vida toda.”
Aqui, compreende-se por que razão uma sociedade, ao entrar em decadência moral ou espiritual, de imediato gera uma modalidade de produção artística que serve de diagnóstico para sua própria decadência. A música e a pintura contemporâneas confirmam esta análise. Ao contrário, a História mostra que ali onde o espírito pôde elevar-se acima da matéria, exatamente ali a arte atingiu o seu ápice. E mesmo que esse grupo humano venha, mais tarde, experimentar a decadência comum a todos os grupos, suas obras de arte deixarão no espaço uma espécie de nostalgia, a recordar as altitudes a que o humano é chamado.
Esta mesma nostalgia é inseparável do processo de criação. Sopro divino, o espírito humano tem saudades de Deus: um rio que, a caminho do mar, chora seu afastamento da Fonte primordial. De outro modo, não seria a ânsia de eternidade uma das principais “explicações” atribuídas ao trabalho do artista. Nas palavras de André Gence[3], padre e pintor, “um artista procura sempre o absoluto, pois sua arte não é mais que uma remota aproximação”. Por isso mesmo, todo artista é um insatisfeito, como o genial Michelangelo a golpear seu “Moisés”, porque a estátua quase-perfeita não falava...
Desde o fim do século XIX, comenta Gence, a arte já não exprime de fato a sociedade humana, mas é sua fotografia em negativo, revelando apenas aquilo que é nela uma potência de morte. Tal arte expressa acima de tudo a ausência, a frustração de uma sociedade positivista onde reina, dominador, o sistema tecnológico no qual a crítica de arte se torna um discurso imaginativo em estado puro. E por imaginar-se livre de todo condicionamento, sentindo-se capaz de ultrapassar todo limite, o artista abre mão de toda referência exterior, rompe com a tradição e... mergulha no vazio. Cada tendência artística age como quem se sente obrigado a partir do zero, como se o homem fosse seu próprio Criador. Natural que essa ausência de continuidade gere a angústia que leva ao ceticismo ou ao desespero.
Enquanto isso, garante-nos o salmista, “os céus narram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 19,1). Se o homem se detivesse a contemplar a poesia do Cosmo, encontraria o caminho de volta para o Poeta (cf. grego poietès) e Fabricante. Atrás da perfeição visível das criaturas, pulsa a perfeição invisível de seu Criador. Assim, o artista deveria ser acima de tudo um interrogador do mundo, em reverente contemplação, à espera de um sinal que aponte para a Fonte da Beleza.
São João da Cruz[4], místico e poeta, bem intuiu a presença dessa Fonte no conhecido poema escrito no cárcere de Toledo, em 1578:
“Aquela eterna fonte está escondida,
Mas bem sei onde tem sua guarida,
mesmo de noite.
Sua origem não o sei, pois não a tem,
Mas sei que toda origem dela vem
mesmo de noite.
Sei que não pode haver coisa tão bela,
E que os céus e a terra bebem dela,
mesmo de noite. [...]
Aquela eterna fonte está escondida,
Neste pão vivo para dar-nos vida,
mesmo de noite.
De lá está chamando as criaturas,
Que nela se saciam às escuras,
mesmo de noite.
Aquela viva fonte que desejo,
Neste pão de vida já a vejo,
mesmo de noite.”
Séculos antes, Santo Agostinho[5] experimentava a mesma condição inquisidora das criaturas em busca do Criador:
“Quem é esse Deus a quem amo? Perguntei à terra, e esta me respondeu: “Não sou eu”. E tudo o que nela existe me respondeu a mesma coisa.
Interroguei o mar, os abismos e os seres vivos, e todos me responderam: “Não somos nós o teu Deus; busca-o acima de nós”.
Perguntei aos ventos que sopram, e toda a atmosfera com seus habitantes me responderam: “Anaxímenes está enganado, não somos teu Deus”.
Interroguei o sol, a lua e as estrelas? “Nós também não somos o Deus que procuras”.
Pedi a todos os seres que me rodeiam o corpo: “Falai-me do meu Deus, já que não sois o meu Deus; dizei-me alguma coisa sobre ele”.
E exclamaram em alta voz: “Foi ele quem nos criou”.
Para interrogá-los, eu os contemplava e sua resposta era a sua beleza”.

