
"ENTENDENDO A PROVIDÊNCIA DIVINA..." (Nm 20)
Nossa incapacidade de apreciar a natureza da providência divina é em grande parte uma função da enorme diferença entre nossa capacidade de entender a realidade e a de Deus. Enquanto temos domínio sobre uma pequena faixa de espaço e tempo, Deus se preocupa com todo o espaço e tempo.
LEITURAS DA LITURGIANÚMEROSPRTEOLOGIA
Bispo Robert Barron (1959-)
"Depois, Moisés e Aarão reuniram a assembleia diante do rochedo, e Moisés lhes disse: "Ouvi, rebeldes! Podemos, acaso, fazer sair água desta pedra para vós?".
(Nm 20, 10)
O LIVRO DE NÚMEROS é, em grande parte, a história da rebelião de Israel contra Deus e sua resistência aos propósitos divinos. Talvez a narrativa de rebelião mais conhecida seja aquela relatada no capítulo 20, sobre a queixa do povo de Israel em Meribá, no deserto. Tendo chegado ao deserto de Zim, ao sul do Mar Morto, o povo discutiu com Moisés sobre a falta de água, usando uma fórmula já bastante familiar: “Quem dera tivéssemos morrido quando nossos parentes morreram diante do Senhor! Por que trouxeste a assembleia do Senhor a este deserto para que morramos aqui, nós e nosso gado? Por que nos tiraste do Egito para nos trazer a este lugar miserável?” (Nm 20:3-5).
Mais uma vez, até mesmo o lugar de abjeção e escravidão atrai aqueles que estão passando pela transição necessariamente árdua para uma nova vida. A água, é claro, é um símbolo elementar na literatura bíblica para a vida espiritual. Lembra-se da água viva que Jesus promete à mulher no poço, água que “brota para a vida eterna” (Jo 4:14). Assim, Israel tem sede literalmente, mas também metaforicamente, por união com Deus. Como antes, a queixa deles manifesta, no nível espiritual, uma falta de confiança na providência de Deus. O fato de que o Senhor tem estado protegendo, defendendo, instruindo e monitorando-os desde o momento de sua fuga do Egito deveria ser evidentíssimo; ainda assim, eles voltam a duvidar do cuidado de Deus para com eles. Com que frequência, ao longo do itinerário espiritual, chegamos a esses pontos de desespero, esses momentos em que estamos convencidos de que Deus nos abandonou.
Tornar esse ponto claro será a principal preocupação do livro de Jó, mas podemos dizer aqui, pelo menos de forma preliminar, que nossa incapacidade de apreciar a natureza da providência divina é em grande parte uma função da enorme diferença entre nossa capacidade de entender a realidade e a de Deus. Enquanto temos domínio sobre uma pequena faixa de espaço e tempo, Deus se preocupa com todo o espaço e tempo. Assim, frequentemente encontramos as decisões e ações de Deus impenetráveis — e, por isso, reclamamos. Por que Deus conduziu Israel da forma exata que ele fez? Israel não pode, em princípio, saber. Portanto, os propósitos de Deus muitas vezes nos parecem desesperadoramente obscuros.
Como é típico, o mediador fiel Moisés intervém em favor do povo, e o Senhor dá a seguinte instrução: “Pega o bastão e reúne a congregação, tu e teu irmão Aarão, e ordena à rocha, diante dos olhos deles, que dê sua água. ... Assim fornecerás bebida para a congregação e seu gado” (Nm 20:8). Como vimos com frequência, Deus se deleita em usar causas secundárias — neste caso, Moisés e Aarão —, mas está claro que é Deus quem vai providenciar o sustento para Israel.
O que se segue é uma das cenas mais enigmáticas da Torá. Na presença de todo o povo, Moisés grita: “Ouçam, seus rebeldes, faremos sair água desta rocha para vocês?” Então, ele golpeia a rocha duas vezes com seu bastão, e a água jorra para o povo e seus rebanhos. Tudo parece ter corrido bem, mas o Senhor imediatamente diz aos dois líderes: “Porque não confiaste em mim, para mostrar minha santidade diante dos olhos dos israelitas, não fareis entrar esta assembleia na terra que lhes dei” (Nm 20:10, 12). A fonte do espanto é que a falta de ação de Moisés não é imediatamente clara. Como ele não demonstrou confiança no Senhor? Alguns especularam que foi a própria pergunta que indicou, talvez, uma falta de confiança completa. Outros opinaram que foi a implicação na pergunta de que era Moisés e não Deus quem faria a água fluir. Outros ainda sustentam que foi o duplo golpe na rocha, indicando certa impaciência ou desobediência da parte de Moisés.
De qualquer forma, devemos dar a última palavra a Deus e admitir que Moisés demonstrou uma falta de confiança semelhante à de todo o povo de Israel. Ele se perguntou se e como Deus proveria — e essa falta de fé, insiste o autor de Números, é ainda mais um obstáculo crucial ao progresso do povo santo em direção à Terra Prometida. Mais uma vez, a punição infligida a Moisés parece bastante severa, mas devemos continuar a ler esses cenários de retribuição como articulações de uma espécie de física espiritual. Nesse caso, a falha em se submeter totalmente à providência divina e confiar completamente em sua eficácia é irreconciliável com a entrada em comunhão íntima com Deus. Talvez possamos encontrar certo conforto ao saber que até mesmo um dos maiores heróis da Bíblia, o homem que viu Deus face a face e falou com Ele como um amigo (Êxodo 33:11), ainda lutava para ver e aceitar plenamente os caminhos de Deus.
Excerto traduzido e adaptado do livro: BARRON, Robert. The Great Story of Israel: Election, Freedom, Holiness. Edição em inglês. Editora: Word on Fire, 2022. p. 95-98
Seleção, adaptação e Tradução: Rafael Andrade Filho
Moisés tira água da Rocha
François Perrier – Pintor (francês) / 1642
Óleo sobre tela
Museus Capitolinos, Roma, Itália

