ÍCONES: A PRESENÇA CRISTÃ NO MUNDO ÁRABE

NO MUNDO DOS ÍCONESCULTURA

Antônio Carlos Santini

8/17/202411 min ler

Ao contrário do que muitos pensam, a cultura árabe não foi imunizada contra a presença cristã. Na Etiópia, na Síria e no Líbano, por exemplo, as comunidades coptas, siríacas, melquitas e maronitas deixaram a sua marca, visível em numerosos ícones que chegaram até nós.

Mesmo naquelas áreas onde a administração e o controle público estavam em mãos muçulmanas, os cristãos encontraram espaço para o culto e a arte sacra. O fato de Jesus e a Virgem serem honrados no Alcorão, o livro sagrado do Islã, terá contribuído para a liberdade que os cristãos encontraram para a produção e reprodução dos ícones de Cristo e da Mãe de Deus.

Uma prova incontestável dessa realidade é o admirável Mosteiro de Santa Catarina, no Sinai. Encontrando-se aquele refúgio cristão em uma área de dominação islâmica e, por isso mesmo, fora da jurisdição bizantina, seus ícones e representações pictóricas escaparam à sanha destruidora perpetrada pela onda iconoclasta, estimulada a partir de Bizâncio pelo imperador Leão III Isáurico, entre os anos 726 e 842 d.C.[1]

Na Síria foram encontradas as ruínas do primeiro templo dedicado a Maria em todo o mundo católico, ainda no século IV: a igreja de Hawa, denominada Santa Maria Theotokos [Mãe de Deus]. Na região, informa Gharib, os ícones eram encontrados não só nas igrejas e mosteiros, mas também em casas de comércio e outros lugares públicos. Em 1023, um sultão árabe de Damasco foi curado da cegueira no Santuário de Nossa Senhora de Sardan. Também o irmão de Saladino, o príncipe muçulmano Malek al-Adel Seif-ed-Din, que pretendia casar-se com a irmã de Ricardo Coração de Leão, foi curado de uma doença olfativa em peregrinação à Madona de Saidnaya, ali deixando uma rosa de ouro como reconhecimento.

Aos olhos da Europa

Em 2006, as Éditions Grégoriennes [Paris] trouxeram à luz uma obra de notável valor estético e histórico: “Icônes Arabes: mystères d’Orient”. Em excelente papel couché, formato 24 x 29cm, com dezenas de ilustrações de página inteira, o precioso livro é enriquecido com a apresentação e os comentários de Madre Agnès-Mariam de la Croix[5].

Sem dúvida, a publicação foi motivada pela divulgação na Europa, entre 2002 e 2004, da então pouco conhecida produção iconográfica da Igreja Melquita. Os ícones árabes cristãos, ao lado de manuscritos árabes, siríacos e karshoumi, bem como objetos litúrgicos variados, foram expostos em Paris, em 2003, por iniciativa do Instituto do Mundo Árabe. Também Frankfurt, em 2004, teve a oportunidade de ver essa exposição, ainda que de forma reduzida.

Em pleno momento de fobia islâmica, os olhos da Europa se arregalavam diante do insuspeitado esplendor da arte sacra cristã livremente produzida no espaço cultural da maioria muçulmana. Ficava claro que os acontecimentos lamentáveis do 11 de setembro de 2001, fruto evidente da politização do Islã, não podiam ser aplicados como um rótulo definitivo e universal ao mundo da cultura árabe. Aliás, foi exatamente o Líbano a nação onde, por séculos, convieram pacificamente as diferentes comunidades religiosas: muçulmana, maronita (católica) e ortodoxa. A busca de Deus estendia uma ponte que superava eventuais conflitos políticos.

Para Madre Agnès, “a procura de Deus pelo homem delimitou uma zona identitária universal, verdadeiro cadinho de civilizações e berço das grandes religiões monoteístas. Esta zona é conhecida como o Crescente Fértil. Suas fronteiras vão das margens do Mediterrâneo até a Pérsia, do delta do Nilo até a Mesopotâmia, passando pelo Sinai, Palmyra e Dura Europos. Ali nasceu a arte figurativa monoteísta”.

O invisível na carne

Como se sabe, a iconografia cristã, ao criar imagens visuais de Jesus Cristo, da Mãe de Deus e dos santos, tem sua justificativa teológica na fé na encarnação do Filho de Deus que, nascendo de mulher (Gl 4,4), assumiu a natureza dos humanos e passou a ter um Corpo e uma Face. Durante a onda iconoclasta, São João Damasceno (aliás, citado no Catecismo da Igreja Católica, 1159, 1162)[6] foi o campeão na defesa do culto cristão que incluía as imagens de Cristo, da Mãe de Deus e dos santos.

Após a encarnação do Verbo, o Deus invisível se mostrara aos olhos humanos na pessoa do Filho. Notar nos evangelhos, mormente em João, a importância do verbo “ver” [cf. Jo 1,39-46.50; 1,4-9; 17,24; e ainda 1Jo 1,1-3]. Daí em diante, a representação pictórica de Cristo já não pode mais ser vista como um procedimento idolátrico. De fato, enquanto o ídolo pagão prende a si mesmo os olhos do adorador, o ícone cristão orienta o olhar humano para a Pessoa que ele representa.

(SÃO JOÃO DAMASCENO, 675-749)

Como observa Madre Agnès, trata-se de um tema litúrgico, já que o Oriente cristão celebra o Ofício do Esposo nos três primeiros dias da Semana Santa, quando este ícone é exposto aos fiéis durante a celebração. Vê-se uma representação contida, sem as chagas nas mãos e com discretas gotas de sangue na fronte. Em realce, a atitude de Cristo que veio para servir, o verdadeiro Servo de Yahweh.

Jorge de Nicomédia [século IX] une-se a Maria, ao pé da Cruz, para rezar: “Beijo a cana com que assinaste o atestado da minha libertação e com que feriste a cabeça arrogante do dragão. Beijo a esponja encostada aos teus lábios incontaminados, com que a amargura da transgressão me foi transformada em doçura [...]. Aquela coroa de espinhos teria sido para mim um diadema régio [...]. Beijo o teu lado do qual jorraram rios da vida e brotou para mim o rio perene da imortalidade”.[7]

Do alto dos edifícios, caiu uma revoada de demônios. No meio do ícone, em caracteres arábicos, um texto traduz a cena: “Quando apareceste no Egito, Ó Luz da verdade, tu dissipaste as trevas da vaidade. Com efeito, seus ídolos, não suportando permanecer diante de teu poder, ó Salvador, sucumbiram e se quebraram”.

Este episódio consta do evangelho apócrifo de Tomé [ca. 200 d.C.] e do Pseudo-Mateus [ca. 400 d.C.], o qual contabiliza a presença de 355 demônios quando Maria entrou no templo pagão conhecido como Capitólio. A cena é ilustrada na 11ª estrofe do Hino Acatisto: “Irradiando ao Egito o esplendor da verdade, expulsaste a treva do erro; agora, destroçados pela força divina, os ídolos caíram. E os homens, salvos, aclamavam a Mãe de Deus:

Ave, reconquista do gênero humano;

Ave, derrota do reino do inferno.

Ave, tu que esmagaste engano e erro;

Ave, tu que revelas a fraude dos ídolos.

Ave, mar que engole o grande Faraó;

Ave, rocha que efundes as Águas da vida.

Ave, coluna de fogo que guias no escuro;

Ave, abrigo do mundo mais amplo que a nuvem.

Ave, doadora de celeste maná;

Ave, mistura de santas delícias.

Ave, tu, mística terra prometida;

Ave, fonte de leite e mel.

Ave, Virgem e Esposa”.

Romano, o Melodista, escreve em um de seus hinos: “No momento de sua chegada ao Egito, prontamente caíram em pedaços as estátuas feitas por mão humana. Aquele que fizera tremer Herodes, provoca também esta ruína dos ídolos. Nascido no seio da Mãe, também agia como Deus. Estava em viagem ao Egito, mas um anjo cuidava da fuga. Voluntariamente Ele se deixava perseguir na caçada, como uma pequena criatura, entrementes fazia-se anunciar a todos como poderoso. Por isso Herodes chorava, porque seu poder estava para ser lançado por terra”.[1]

Uma mensagem para o futuro?

Na apresentação de “Icônes Arabes: mystères d’Orient”, Madre Agnès-Mariam observa que “o passado da herança comum” entre o mundo árabe e o mundo cristão “representa hoje uma mensagem para o futuro”. E tem razão. Se as religiões deixarem de ser utilizadas como instrumento de opressão política, imposição cultural e pressão revolucionária, abrir-se-á um precioso campo para a convivência, o diálogo e a valorização do outro e do diferente.

Trata-se de mergulhar em um subsolo cultural de profundidade inimaginável, capaz de abrir novos caminhos para os valores eternos, muito além das tonalidades dos idiomas e dos matizes das bandeiras. Ao adotarem formas e cores humanas, os ícones abrem uma porta luminosa para o invisível.

* * *

Levando o Menino Jesus, a Virgem monta um burrinho de cabeça baixa, puxado por um anjo. Discrepando dos evangelhos apócrifos, que dão a Jesus a idade de 3 anos na fuga para o Egito, o Menino veste os panos de um recém-nascido. São José traz uma trouxa nos ombros e um cestinho na mão direita, como humilde servidor e testemunha do mistério da Encarnação do Verbo.

À direita, vê-se a cidade, em cujo portão se lê em árabe: “poeta da cidade do Egito”. À esquerda, a árvore que, no Pseudo-Mateus, ter-se-ia dobrado por ordem do Menino Deus, para que a Virgem Mara se alimentasse de seus frutos.

Os ícones árabes cristãos, entretanto, distinguem-se dos cones gregos e russos por alguns traços particulares, entre os quais os golpes de pincel secos e espessos, com as tonalidades delicadas e superpostas típicas dos mestres italianos. As sombras e volumes, ausentes nos ícones clássicos, gregos e bizantinos, mostram-se com frequência na nova estética.

Vamos contemplar dois dos números ícones que nasceram em ambiente árabe cristão.

A Grande Humildade

Este ícone é uma têmpera sobre madeira [93 x 64cm], de autoria do Bispo Parthénios, e está localizado na igreja de São Nicolau dos gregos-ortodoxos, em Trípoli, na Líbia. Datado de 1762, mostra o Cristo em pé, a três quartos de estatura. É a atitude do Ecce Homo latino, correspondente a João 19,5, e que os gregos denominam Akra Tapeinósis [Grande Humildade]. Túnica púrpura, coroa de espinhos, mãos atadas com o caniço da zombaria romana.

A guinada para o Ocidente

A arte dos cristãos arabófonos, observa Madre Agnès, desenvolveu-se no tempo em que o Império Otomano abriu suas portas ao Ocidente, o que permitiria rica simbiose entre diferentes substratos culturais. Entre Veneza e Constantinopla, a arte dos árabes cristãos pôde viver o seu próprio Renascimento.

Desde 1571, com a chegada dos primeiros franciscanos, seguidos dos carmelitas (1623), do jesuítas (1625) e lazaristas (1773), foram criados conventos e escolas de onde se difundiu a espiritualidade ocidental. Realizaram-se, então, as primeiras traduções para o idioma árabe. Antigos temas são retomados pelos religiosos estabelecidos no hinterland islâmico: o Cristo Pantocrátor, a Árvore de Jessé (novo título da Mãe de Deus), a Sagrada Família, São José, a Virgem que amamenta (a Galaktotrophousa), os ícones de festa (Natividade, Transfiguração, Ascensão...) e, curiosamente, os santos guerreiros: São Jorge, São Miguel, Elias eliminando à espada os profetas de Baal.

Notar os grafemas com caracteres árabes no título: “Deus se submete ao julgamento” [à direita] “para salvar todos os humildes da terra” {à esquerda].

A Fuga para o Egito

Obra assinada por Mikhail Al-Dimachqi [Miguel de Damasco], é uma têmpera sobre madeira [37,7 x 31cm], conservada na igreja de São Constantino e Santa Helena, em Yabrud, Síria.

Mesmo na remota Rússia dos séculos XIV e XV, chegou a sobreviver o estilo siro-egípcio original. Em sua origem, afirma Kondakov[2], “o ícone era o resultado combinado de um retrato altamente artístico e de uma técnica muito criativa, pois o processo da encáustica exigia simultaneamente um artista dotado de experiência e de grande talento. A transferência do ícone da Síria e do Egito para a Grécia e o Império bizantino gerou forte transformação de suas principais características, o que se acentuaria ainda mais com sua chegada à Rússia”. Às cores então tradicionais dos modelos do Egito – o ocre vermelho profundo, o marrom quente, o vermelho tijolo e o preto – vieram juntar-se o verde escuro, o índigo e a púrpura profunda, como ainda hoje se vê em Chipre, em Ravena e em Roma.

Palestina e Síria

Nada mais natural que a terra onde o Verbo se encarnara fosse também uma região marcada por numerosa produção de ícones cristãos. Os santuários marianos erguidos nos Lugares Santos (Belém, Nazaré, Jerusalém) receberam riquíssima decoração admirada pelos peregrinos de todo o mundo. Já Giovanni Mosco (†634), que visitou mosteiros na Palestina, Egito e Síria, registrava em seu livro Pratum Spirituale a existência de numerosos ícones marianos como especial traço da devoção dos eremitas em uma vida de penitência e oração.

Segundo atesta Kondakov[3], foi na Terra Santa que se produziram os primeiros “ícones de festa”, com a representação dos episódios extraídos dos Evangelhos (Anunciação, Natividade, Batismo de Jesus etc.), que acompanhavam as celebrações no local exato onde se supunha terem ocorrido tais eventos.

O território da antiga Síria era muito mais extenso que a Síria atual, estendendo-se até a Mesopotâmia. Georges Gharib[4], especialista em liturgia oriental, anota os destacados teólogos das escolas de Antioquia e Edessa, entre os quais Santo Efrém, São Tiago de Sarug, São Romão, o Melodista, São João Damasceno, André de Creta e Sofrônio de Jerusalém.

“Além dos limites das calamidades da história,

além das fronteiras de seus conflitos políticos ou religiosos,

os homens falaram uma linguagem comum,

modelando uma beleza incomparável.”

(MADRE AGNÈS-MARIAM DE LA CROIX)

[1] Relata-se que Maomé, no momento da destruição dos signos politeístas em Meca, impediu que seus discípulos apagassem os ícones de Cristo e da Virgem. Cada um deles pintado sobre uma pilastra do santuário. Essas imagens permaneceram na Kaaba de Meca até o incêndio ocorrido em 683 d.C., isto é, mais de meio século depois.

[2] Cf. KONDAKOV, Nikodin Pavlovich, Icônes, Parkstone Press International, Nova Iorque, 2008, p. 25.

[3] KONDAKOV, op. cit., p. 28.

[4] Cf. GHARIB, Le Icone Mariane: storia e culto, Ed. Città Nuova, Roma, 1987, p. 23ss.

[5] Libanesa, antiga carmelita, Madre Agnès-Mariam de la Croce dirige em Qara, no deserto líbio, uma comunidade ecumênica de sete religiosas, as Monjas da Unidade de Antioquia: uma grega católica, uma grega ortodoxa, uma etíope, uma armênia, uma latina e uma maronita. “Só nos falta uma siríaca!” - diz ela. Iconógrafa de formação, ela dá apoio ao Museu de Ícones de Frankfurt e ao programa ManuMed da União Europeia no trabalho de restauração de ícones.

[6] “Antigamente Deus, que não tem corpo nem aparência, não podia em absoluto ser representado por uma imagem. Mas agora que se mostrou na carne e viveu com os homens, posso fazer uma imagem daquilo que vi de Deus. [...] Com o rosto descoberto, contemplamos a glória do Senhor.” (Imag. 1,16; PG 96,1245A.)

[7] Apud GHARIB, Georges, in Os Ícones de Cristo: história e culto, Ed. Paulus, São Paulo, 1997, p. 254.