INTRODUÇÃO À DEI VERBUM
Reflexões sobre a revelação divina, a Importância das escrituras e como interpretá-las segundo instrução da Igreja. Estas reflexões compõem um estudo comentado sobre a constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina.
"Mas os seus espíritos se tornaram obscurecidos. Sim; até hoje, quando leem o Antigo Testamento, este mesmo véu permanece. Não é retirado, porque é em Cristo que ele desaparece. Sim; até hoje, todas as vezes que leem Moisés, um véu está sobre o seu coração. É somente pela conversão ao Senhor que o véu cai. Pois o Senhor é o Espírito, e onde se acha o Espírito do Senhor aí está a liberdade. E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito."
Nesta passagem da segunda Carta aos Coríntios, capítulo 3, versículos 14 a 18, São Paulo está falando de judeus que liam o Antigo Testamento sem o conhecimento de Jesus Cristo. Mas esta passagem basilar também serve para alertar os cristãos atuais que se aproximam da escritura sem a devida humildade e sem a tutela do Espírito Santo estão lendo-a com um véu "sobre seu coração", e que a interpretação das escrituras sem o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo tornar-se-á estéril.
O que é a Dei Verbum
A Dei Verbum (Palavra de Deus) é basicamente uma declaração da Igreja que explica como Igreja sabe as coisas que ela ensina sobre Deus. Isto é chamado de teologia fundamental. É a fundação onde tudo o mais se apoia. É o ensinamento magisterial sobre como a Igreja sabe o que ela ensina, magisterialmente. Ela se enfoca na revelação divina, na importância das sagradas escrituras e na sua interpretação.
E esta declaração não está fora de contexto, ao contrário, existe uma linha do tempo histórica de documentos importantes da Igreja relacionados à interpretação da Bíblia e aos ensinamentos da Igreja, senão vejamos.
· A Dei Filius do Vaticano I (1870): Documento do Primeiro Concílio do Vaticano que aborda questões de fé e razão, enfatizando a harmonia entre elas.
· A Providentissimus Dei, de Leão XIII (1893): Encíclica do Papa Leão XIII que foca no estudo bíblico e no papel da Bíblia na Igreja. Leão XIII, a posteriori, estabelece a Comissão Bíblica Pontifícia (1902) para promover e salvaguardar os estudos bíblicos católicos.
· A Divino Afflante Spiritu de Pio XII (1943): Encíclica do Papa Pio XII que encoraja o uso de métodos modernos de estudo bíblico para uma compreensão mais profunda das Escrituras.
· A Dei Verbum do Vaticano II (1965): Documento chave do Concílio Vaticano II sobre revelação divina, a importância da Sagrada Escritura e sua interpretação.
· A Interpretação da Bíblia na Igreja da Comissão Bíblica Pontifícia (1993): Documento que foca na interpretação bíblica contemporânea dentro da tradição católica.
· A Verbum Domini de Bento XVI (2010): Exortação apostólica do Papa Bento XVI sobre a Palavra de Deus na vida e missão da Igreja.
Podemos notar então, que a Dei Verbum faz parte de uma conversa em andamento sobre esse assunto e que, portanto, há um contexto histórico e consequentemente ainda podem haver questões não respondidas e, por que não, podem surgir novas questões. Esses documentos refletem coletivamente a abordagem evolutiva da Igreja em relação à interpretação bíblica e sua integração com os avanços teológicos e acadêmicos, principalmente após o surgimento do método histórico crítico. O método histórico crítico de estudo da Bíblia surgiu a partir do século XVIII, em meio ao Iluminismo e à Revolução Científica, quando houve uma crescente valorização da razão e da evidência empírica. O desenvolvimento desse método pode ser atribuído a diversos fatores como, por exemplo, a consolidação das ciências humanas como arqueologia e história. Esse método se consolidou ao longo do século XIX e XX, influenciando significativamente a teologia, os estudos bíblicos e a educação religiosa.
Inicialmente, houve uma reação da Igreja ao método na encíclica Providentissimus Dei, publicada em 1893, em que o Papa Leão XIII defende uma posição crítica em relação ao método histórico crítico. É importante ressaltar que, na época, esse método era mais frequentemente utilizado para contestar e até negar aspectos fundamentais da fé, como a divindade de Cristo. Leão XIII, em sua encíclica, estabelece parâmetros para uma exegese aceitável, enfatizando que esta deve levar em conta a interpretação dos Padres da Igreja e o magistério eclesiástico na compreensão das Escrituras.
Isso levantou a questão: por que, então, estudar a Bíblia? Poderíamos simplesmente nos basear nos ensinamentos dos Padres da Igreja. Porém, é crucial notar que os Padres da Igreja não possuem unanimidade em todas as questões. Portanto, a Bíblia, por si só, é digna de um estudo abrangente. Então, em 1943, Pio XII torna a exegese um pouco mais flexível, exortando: "Estudem a Bíblia!" Esse chamado reflete uma abertura renovada para a investigação das Escrituras, incentivando os fiéis a se aprofundarem no texto bíblico e a aproveitarem seu valor teológico e espiritual. A Dei Verbum, em 1965, finalmente diz: vão estudar a Bíblia, porque é através do estudo bíblico que Deus vai continuar a nutrir a Igreja.
O documento de 1993, A Interpretação da Bíblia na Igreja, é um bom documento, mas depois questionou-se o fato de que os estudiosos bíblicos não avaliaram os seus próprios métodos. Então, Bento XVI na Verbum Domini aponta para este fato e diz que os estudiosos da Bíblia devem avaliar seus próprios métodos.
É o objetivo desta Serie de Artigos articular o documento de maneira a aprofundarmos seu entendimento, que é crucial, para entender a espiritualidade do nosso Instituto, não por acaso, homônimo. Para tanto vamos fazer uma leitura comentada conjuntamente dos principais trechos da Dei Verbum. A leitura prévia, completa do documento é altamente recomendável. Aqui está o link para o documento: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
Como o prefácio é chave para o entendimento do documento, façamos logo sua leitura para concluir esta introdução ao documento.
Prefácio da Dei Verbum.
1. O sagrado Concilio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus proclamando-a com confiança, faz suas as palavras de S. João: “anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu: anunciamos-vos o que vimos e ouvimos, para que também vós vivais em comunhão conosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo" (1Jo 1, 2-3). Por isso, segundo os Concílios Tridentino e Vaticano I, [o sagrado concílio] entende propor a genuína doutrina sobre a Revelação divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere, e esperando ame [1].
O prefácio nos informa que este documento é dado pela Igreja como uma obediente resposta às Escrituras, pois é exatamente isto o que a própria Escritura nos pede para fazer. A Escritura está, o tempo todo, nos convidando para a aliança e comunhão com Deus e, portanto, este é o trabalho da Igreja: nos convidar para a aliança e comunhão com Deus. É por isso que a Igreja criou a Dei Verbum: “para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere, e esperando ame. Portanto, não é a Igreja quem estabelece a agenda; é a Palavra de Deus que estabelece a agenda. O motivo é a Escritura que convida, e a resposta da Igreja, através da tradição, é nos convidar para a comunhão com Deus.
Em Suma, A Igreja nos convida à comunhão para que o fiel cresça nas virtudes teologais (fé, esperança e caridade), para que possamos entrar em comunhão com Deus (figura abaixo). Para tal nos estabelece a genuína doutrina da revelação divina e como se deve dá a sua transmissão.
Orai sem cessar: Senhor, aumentai a minha fé!


[1] Cfr. S. Agostinho, De catechizandis rudibus, c. IV, 8: PL 40, 316.