a man standing in front of a church alter

NÃO HÁ JUSTIÇA SEM MISERICÓRDIA

ARTIGOSEVANGELIZAÇÃOPRTEOLOGIAENSAIOMUNDO CONTEMPORÂNEO

Rafael Andrade Filho

9/17/2025

Em um momento cultural que frequentemente valoriza a justiça como retribuição e o mérito como a principal moeda do valor humano, a tradição cristã apresenta uma ordem contracultural e profundamente prática da vida espiritual: a misericórdia precede o amor. Esse princípio é uma espécie de “física espiritual” que encontra eco profundo na sensibilidade bíblica, na vida dos santos e na prática pastoral, em que, justiça e misericórdia são mutuamente necessárias: não existe justiça plena sem misericórdia, e a misericórdia sem uma orientação justa perde sua finalidade restauradora. A justiça portanto deve ser "temperada" pela compaixão de maneira que a finalidade não seja apenas punir ou igualar contas, mas restaurar a dignidade e reparar a teia de relações feridas. Dizer, portanto, que “não existe justiça sem misericórdia” é indicar uma convicção prática: a justiça que impede a recuperação, que exclui o arrependimento e que transforma o outro em objeto de vingança, falha em seu propósito. A Justiça autêntica busca restaurar as relações, e essa restauração requer sua subordinação à misericórdia para que seja plena.

O evangelho propõe algo profundo e transformador: a misericórdia mostrada àqueles que não a merecem desperta verdadeiro arrependimento e uma efusão de amor. Quando a misericórdia é oferecida primeiro, os corações humanos se libertam para mudar; quando se insiste na punição simples e pura, as pessoas são empurradas para o segredo, a vergonha ou a resistência endurecida. Deus intervém não apenas para julgar, mas para curar, perdoar e transformar e essa também deve ser a dinâmica humana.

Justiça e Misericórdia


No centro da afirmação cristã está a definição de misericórdia como a graça mostrada a alguém que não a merece. Misericórdia é dom, gratuito e imerecido. A Justiça, em seu sentido cármico, em contraste, designa um sistema de causa e efeito moral segundo o qual a pessoa recebe o que sua qualidade moral merece. Ela advém do instinto de devolver a cada um o que lhe é devido. Ambas as ideias têm papéis: a justiça exige que os males sejam enfrentados e que se faça reparação; a causalidade moral permite ordem social e responsabilidade pessoal. Mas quando uma sociedade, comunidade religiosa ou um indivíduo substitui completamente a misericórdia pelo “Carma” como princípio operante, seguem-se vários efeitos tóxicos: a prática do bode expiatório torna-se uma forma fácil de autojustificação, os feridos espiritualmente são excluídos em vez de curados, e a virtude torna-se performativa em vez de responsiva.


Na tradição bíblica há uma sensibilidade teológica e ética que insiste na inseparabilidade entre justiça e misericórdia. A Escritura expressa essa tensão complementar de modo eloquente no Salmo 85: “Misericórdia e verdade se encontrarão, justiça e paz se beijarão.” (Sl 85, 10). Essa imagem sugere que a justiça autêntica não é um juízo frio e isolado, mas encontra sua plenitude em conjunção com misericórdia e a verdade, culminando em paz.

As Escrituras também demonstram repetidamente que o modo de agir de Deus é a misericórdia. O Novo Testamento narra um Deus que se aproxima dos pecadores, e não que se afasta deles. Isso não nega a justiça; antes implica que a misericórdia transcende a justiça. Ou seja, a misericórdia engloba a justiça e a justiça, em última análise, é um "braço" da misericórdia. A misericórdia subverte a satisfação fácil derivada da retribuição pura e simples e redireciona as energias humanas para a restauração e a renovação, permitindo que a justiça seja plena.

Revisitando a misericórdia no Evangelho.

Vamos revisitar quatro cenas evangélicas à luz da justiça misericordiosa para ilustrar perfeitamente essa prioridade. As histórias da mulher pecadora na casa de Simão, da mulher pega em adultério, de Zaqueu e de Simão Pedro constituem um pequeno cânon de exemplos bíblicos em que a misericórdia é o catalisador da conversão. Cada cena exibe a mesma dinâmica estrutural: uma pessoa ou multidão determina a culpa e considera que a punição é merecida; Jesus, em vez disso, oferece misericórdia ou age de modo a suscitar misericórdia; o destinatário responde com contrição, reparação ou discipulado. A misericórdia, então, não é indulgência passiva; é uma potência que altera a trajetória de uma vida.

1) Simão, a mulher do vaso de alabastro (Lc 7, 36-50)

O Episódio de Simão, o Fariseu, e a mulher com o vaso de alabastro oferece um palco vívido que revela a visão interior das personagens. Simão se senta em juízo e vê apenas uma categoria — “uma pecadora”, “uma prostituta”. A mulher anônima, em contraste, aproxima-se com humildade, chorando e lavando os pés de Jesus com suas lágrimas e ungindo-os com óleo — sinais extravagantes de respeito e amor. Jesus interpreta a cena por meio de uma parábola sobre dois devedores perdoados diferentes quantias e pergunta qual amará mais — o que foi mais perdoado. O ponto não é sentimentalizar o pecado, mas revelar visão. A incapacidade de Simão de ver a mulher como pessoa está ligada à sua incapacidade de ver o dom da misericórdia; seu julgamento é projeção de uma mentalidade cármica de justiça, como retribuição. A extravagância do amor da mulher é consequência direta de ter sido abraçada pela misericórdia. Que o amor segue a misericórdia é a afirmação teológica operante!

2) A mulher apanhada em adultério (Jo 8, 1-11)

O episódio da mulher pega em adultério (João) amplia o tema em uma crítica social. Aqui os escribas e fariseus armam uma captura pública, buscando prender Jesus e reassegurar normas comunitárias pela execução da pena de apedrejamento. A figura do bode expiatório é instrutiva: as comunidades aliviam tensões internas projetando-as sobre uma vítima e unificando-se em torno desse ato de violência. Jesus recusa entrar neste jogo. Ao escrever na areia — recusando corresponder à histeria do grupo — e pronunciar que apenas o que estiver sem pecado pode lançar a primeira pedra, ele desmonta o mecanismo da violência coletiva. O resultado é notável: a multidão se dispersa, a mulher fica e Jesus dirige-se a ela com misericórdia: “Nem eu te condeno; vai, e não peques mais.” A misericórdia dada não endossa a continuação do pecado; liberta a mulher para viver de modo diferente. Ela rompe o ciclo de vingança e o substitui por uma ética voltada à cura.

3) Zaqueu (Lc 19. 2-10)

Zaqueu, o chefe dos publicanos em Lucas, é talvez a demonstração mais impressionante do poder transformador da misericórdia. Os cobradores de impostos eram notoriamente desprezados como colaboradores e fraudadores; Zaqueu é explicitamente descrito como rico, sugerindo exploração prolongada. Ainda assim, sua curiosidade ou desejo o faz subir numa figueira para ver Jesus. Jesus nomeia-o publicamente e anuncia a intenção de ficar em sua casa. Esse gesto — ir ao encontro do pecador e entrar em sua casa — sinaliza uma invasão da graça. Onde a sociedade evitaria ou puniria, Cristo escolhe a proximidade. A resposta de Zaqueu é imediata e extraordinária: compromete-se a restituir quadruplicado e a dar metade de seus bens aos pobres. A misericórdia não foi atenuação de padrões morais; foi a condição que possibilitou uma reorientação moral total.

4) Chamado de Simão Pedro (Lc 5, 1-11)

Por fim, o chamado de Simão Pedro ilustra a misericórdia tanto como revelação quanto como chamado. Jesus entra no barco de Simão sem cerimônia e instrui-o a lançar-se às profundezas. A pesca milagrosa que se segue sobrecarrega Simão, que exclama a sua indignidade. A sequência importa: a presença de Jesus e a abundância são vividas como misericórdias que iluminam o pecado de Simão. A consciência do pecado surge não pela condenação, mas por estar à luz da bênção de Deus. O resultado é arrependimento e um compromisso inteiro e imediato de seguir. A misericórdia, aqui, funciona como dom que desperta a vocação.

Implicações Pastorais e Psicológicas

A conjunção entre justiça e misericórdia tem desdobramentos práticos e psicológicos claros. Pastoralmente, na imagem promulgada pelo Papa Francisco, a Igreja deve ser um “hospital de campanha”: um lugar onde os feridos podem ser recebidos, não um tribunal para os já quebrados. Ministros pastorais que compreendem a primazia da misericórdia resistem à tentação de exigir perfeição moral como pré-condição para o cuidado pastoral. Eles criam espaços onde penitentes podem ser acolhidos, curados e então, em gratidão, transformados. A misericórdia, em outras palavras, não se opõe à lei; é terapêutica.

Do ponto de vista psicológico, a misericórdia funciona como corretivo às dinâmicas da vergonha. Vergonha pública, exclusão ou condenação rígida frequentemente endurecem os indivíduos em segredo, negação ou autodesprezo. Receber misericórdia — um ato imerecido de aceitação — pode dissipar os efeitos paralisantes da vergonha e possibilitar comportamento restaurador. Fenômenos sociais contemporâneos como as multidões online e a cultura do “cancelamento” confirmam a intuição girardiana: a acusação pública pode produzir uma pseudo-unidade corrosiva e impedir o crescimento moral autêntico. A resposta cristã é recusar participar desse bode expiatório e oferecer, em vez disso, caminhos para a reconciliação. A misericórdia não evita a responsabilização; antes, torna a responsabilização significativa, restaurando confiança e coragem.

Teologia e Ética: Para a Imitação de Deus

A reflexão teológica ancora a prática da misericórdia na vida de Deus. As Escrituras retratam continuamente Deus como pai misericordioso que busca os perdidos e se regozija com seu retorno. O objetivo do evangelho não é apenas nos dizer algo sobre Deus, mas nos tornar semelhantes a Deus. O comando “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste” convoca o crente a participar da misericórdia divina. Imitar a Deus significa escolher a restauração em vez da exclusão, o perdão em vez da ostracização e a hospitalidade em vez da suspeita. Escolher a misericórdia é conformar a imaginação ética ao regime da graça.

Há um equilíbrio ético importante: a misericórdia não pode transformar-se em pretexto para indiferença diante do mal. As histórias evangélicas deixam isso claro. As misericórdias de Jesus são transformadoras; chamam os destinatários ao arrependimento e à restituição. A misericórdia é o gesto inicial necessário precisamente porque abre o caminho para uma mudança duradoura que a justiça isolada não alcança. Justiça e misericórdia não são opostas, mas ordenadas: a justiça oferece o quadro de seriedade moral; a misericórdia fornece a força vivificadora que traz a transformação moral.

Ressonância Contemporânea

O cenário contemporâneo mostra sinais de fome espiritual renovada mesmo em lugares que muitos julgavam perdidos para o secularismo. O interesse de profissionais, intelectuais e jovens por questões religiosas — por vezes catalisado por figuras públicas ou debates culturais — sugere que a fome por sentido persiste. Contudo, esse ressurgimento não deve ser confundido com retorno à certeza moral ou a julgamentos fáceis. Se algo se manifesta, é um reconhecimento crescente da fragilidade humana. Comunidades de fé que desejam ser relevantes devem apresentar tanto o desafio da virtude heroica quanto um ministério hospitaleiro de misericórdia.

O testemunho da igreja precisa incorporar ambas as verdades. A insistência de João Paulo II na santidade heroica e a ênfase do Papa Francisco na misericórdia são complementares. O perigo é a falsa polaridade: ou uma religião austera de perfeccionismo que envergonha os feridos, ou uma religião sentimental e permissiva que negligencia as exigências morais. A postura saudável é dialética: convidar à santidade enquanto se acolhe ternamente na fraqueza.

Implicações Práticas: Como Ser Agentes de Misericórdia

Traduzir este princípio em comportamento concreto requer práticas pessoais e comunitárias.

· Primeiro, comece resistindo à inclinação de formar bodes expiatórios. Quando a conversa de grupo degenerar em culpa compartilhada, faça uma pausa e recuse intensificar.

· Segundo, crie estruturas de acolhida — programas pastorais que tornem seguro buscar ajuda, confessar falhas e receber orientação sem medo de censura imediata.

· Terceiro, combine misericórdia com responsabilização: a misericórdia pode iniciar um processo que inclui restituição, reparação e apoio sustentado para a mudança moral.

· Quarto, ensine a teologia da misericórdia para que as comunidades a interiorizem como virtude e não apenas como tema de sermão.

· Finalmente, modele misericórdia pessoalmente. Pequenos atos de generosidade inesperada — tempo, presença, escuta confidencial — podem abrir corações mais eficazmente do que diatribes moralizantes.

Conclusão

Misericórdia primeiro, amor depois: essa ordenação não é fraqueza sentimental, mas a economia sábia de Deus. As Escrituras apresentam um padrão consistente em que a misericórdia divina inicia a conversão humana, o arrependimento floresce à luz do perdão e o amor segue como fruto natural. Praticar a misericórdia é participar da vida divina e resistir à tentação humana de encontrar unidade por exclusão. Em um mundo rápido para julgar e ávido por bodes expiatórios, o testemunho cristão da misericórdia abundante é revolucionário e absolutamente prático. Uma comunidade que recebe os feridos, recusa participar na culpa coletiva e combina perdão com o desafio de crescer, torna-se um hospital de campanha da graça onde as pessoas não são meramente desculpadas, mas curadas; não meramente toleradas, mas transformadas. Onde não há amor, ponha amor: ofereça misericórdia e encontrará o amor.

Texto de Rafael Andrade Filho, Mestrando em Educação Católica e Teologia pelo Augustine Instituto, EUA. Membro da Comunidade Word on Fire Ministers. https://www.facebook.com/br.rafael.andrade


Referências

BARRON, Robert (Bishop). Mercy comes first; love follows. YouTube, 24 jul. 2025. Disponível em: <https://youtu.be/urC1SinqBsc?si=fvMsBpH85mXlbXJy>.

DAUPHINAIS, Michael; Levering, Matthew. Holy People, Holy Land: A Theological Introduction to the Bible. Baker Publishing Group. Kindle Edition.

GIRARD, René. Things Hidden Since the Foundation of the World. Stanford: Stanford University Press, 1987.

HAHN, Scott. The Book of Psalms (Ignatius Catholic Study Bible). Ignatius Press. Kindle Edition.

HAHN, Scott; Mitch, Curtis. Ignatius Catholic Study Bible: New Testament. Ignatius Press. Kindle Edition.

WALTON, John H. Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible. Baker Publishing Group. Kindle Edition.