
NOSSA SENHORA DA TERNURA
O ícone de Vladimir
NO MUNDO DOS ÍCONESCULTURA


SONETO 5
Beato o ícone de Vladimir
Que traz a Mãe, Maria, com Jesus,
Seguindo os povos da primeva “Rus”,
Caminhando na fé sem desistir!
Nos tons do ouro límpido de Ofir,
A despedir lampejos sob a luz,
O manto imperial ali reluz
No Menino que a Virgem deixou vir!
Quanta beleza ao mundo é revelada
Na Mãe de Deus que se tornou morada
Da eterna e divinal Sabedoria!
Segredo da Trindade, em seu arcano,
Inacessível ao pensar humano,
Resplandece a figura de Maria!
Da Primeva “Rus”
Uma das mais antigas e expressivas escolas da arte dos ícones é a “escola russa”. Em pleno governo comunista, quando a UNESCO organizou a Exposição Internacional de Arte, pedindo a cada país que enviasse o melhor de sua produção estética, a União Soviética não pestanejou: mandou ícones cristãos!
O termo “rus” designa o campo, a campanha aberta que os gelos cobrem no inverno rigoroso. De origem latina [rus, ruris – o campo], definia o que não merecia o nome de “cidade”. Lá, nas imensidões do hinterland que começa nos Montes Urais e se estende aos extremos da Sibéria e da Finlândia, ali estava o povo que rezava diante de seus ícones. Por onde passavam, em suas migrações, nos êxodos forçados pela guerra e pela fome, caminhavam com eles os seus ícones sagrados. Foi assim também em sua “peregrinação interior”.
Escreve o Papa João Paulo II: “Convém também recordar o ícone de Nossa Senhora de Vladimir. Que constantemente acompanhou a peregrinação de fé dos povos da antiga ‘Rus’. Aproxima-se o primeiro milênio da conversão ao cristianismo daquelas nobres terras de gente humilde, de pensadores e de santos. Os ícones são venerados ainda hoje na Ucrânia, na Bielo-Rússia (ou Rússia Branca) e na Rússia, sob diversos títulos: são imagens que atestam a fé e o espírito de oração daquele povo bondoso, que adverte a presença e a proteção da Mãe de Deus. Nesses ícones a Virgem Maria resplandece como reflexo da beleza divina, morada da eterna Sabedoria, figura da orante, protótipo da contemplação e imagem da glória: tenta-se representar aquela que, desde o início de sua vida terrena, possuindo a ciência espiritual inacessível aos raciocínios humanos, com a fé alcançou o conhecimento mais sublime”. (Encíclica Redemptoris Mater, 33.)
SONETO 6
Do teu Olhar misericórdia mana,
Qual da oliveira o mais suave azeite...
Beato o infeliz que, pronto, aceite
Curar-se, ó Mãe, da angústia que o engana!
Ah! quanta gente a Culpa acusa e dana!
- Vidas mortas, sem Graça que as enfeite!
Já fui assim, ó Mãe, mas logo achei-te
E a Aurora de teus Olhos me engalana.
Pesquiso o teu Olhar: é mais profundo!
Passa por mim e atinge a todo o Mundo
Que, por órfão, divaga sem destino...
É como se do Ícone saltasses
E sobre a cega multidão lançasses
A sombra salvadora do Menino...
Misericórdia: o suave azeite
O Ícone de Vladimir é conhecido popularmente como “Nossa Senhora da Ternura” ou a “Eleúsa”. Há um verbo grego – eleein – que pode ser traduzido por “ter compaixão, isto é, com palavras, falando, excitar a compaixão daquele que ouve. O mendigo que pede esmolas [eleemosýne] faz exatamente isto. Na missa de antes, no Ato Penitencial, rezávamos “Kýrie, eléison”, isto é, Senhor, tende piedade de nós.
Da mesma família de palavras, temos élaion, o azeite, produto da oliveira. Era o óleo usado para a unção dos profetas, anunciadores do perdão e da misericórdia de Deus. E foi exatamente uma folha de oliveira que a pomba do pós-dilúvio trouxe no bico, para anunciar um tempo em que “não mais amaldiçoarei a terra por causa do homem” – diz Deus – “e não ferirei mais todos os seres vivos” (Gn 8,21). Tempos novos da misericórdia e da magnanimidade!
Quando veio o Messias, nascido de Mulher, seu sacrifício é iniciado pela agonia no Getsêmani (em hebraico, o “lagar de azeite”). Exatamente ali, onde a azeitona prensada na moenda dava o suave azeite, ali mesmo Jesus, premido pela angústia, dá-nos suor e sangue. E se o azeite curava as feridas, tirava a dor das queimaduras, ungia os profetas e, enfim, queimava-se nas lamparinas para iluminar a casa, o Sangue de Jesus vem lavar a humanidade pecadora e envolvê-la de todo em sua Graça.
A simples presença do Filho no colo da Mãe é sinal de que somos objeto da misericórdia de Deus. “Tanto Deus amou ao mundo, que lhe deu o seu Filho bem-amado...” (Jo 3,16.) E a Virgem-Mãe ergue nos braços o Filho, apresenta-o aos olhos da Humanidade como quem diz: - “Vejam bem a que ponto vocês foram amados!”
Certamente, o modo como Maria abraça o Filho é um “ícone” do amor de Deus por nós. Mas também ela, a Mulher, diz a cada um: - “Como eu gostaria de estreitar em meus braços a você, meu filho!” Protótipo da Igreja, Maria nos convida a viver a misericórdia: ser uma Igreja que acolhe e que abraça aqueles a quem o mundo detestaria abraçar...


Já foi observado que são frequentes as aparições marianas em grutas. Numa gruta nasceu o Salvador. Em outra gruta ele foi depositado, após sua morte. E a gruta – figura côncava, como o colo, como o útero materno – é o símbolo do feminino: acolhimento, receptividade, capacidade de ser preenchida. Assim a Igreja se sente interpelada a desempenhar seu papel no mundo: figura feminina, maternal, matriz e nutriz. Odre espiritual a ser preenchido pelo Espírito de Deus. Como a Mãe de Deus: vaso insigne de devoção!
SONETO 10
Para criar a imagem da Beleza
E demonstrar a força de sua Arte,
Deus quis a raça humana a contemplar-te
E os anjos a louvar-te a Realeza!
Tudo de santo, tudo de Pureza,
Deus decidiu, ó Soberana, dar-te:
Buscou no céu, na terra, em toda parte,
O amor de Mãe e o porte de Princesa!
E., para cumular a maravilha
O Criador deu coração de Filha
Àquela que seu Filho procurava...
E é isso que o demônio não entende
E, por mais que se esforce, não compreende:
- Sendo Rainha, ela se faz Escrava!
A toda bela
“Querendo criar uma imagem da beleza absoluta e manifestar claramente aos anjos e aos homens o poder de sua arte, Deus fez Maria verdadeiramente toda-bela. Ele reuniu nela as belezas parciais que distribuíra às outras criaturas e a constituiu como o ornamento comum a todos os seres visíveis e invisíveis; ou antes, fez dela como que uma mistura de todas as perfeições divinas, angélicas e humanas, uma beleza sublime que embeleza os dois mundos, elevando-se da terra até os céus e, mesmo, ultrapassando este último...” (São Gregório Palamas, citado por P. Evdokimov.)
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· Poemas e texto extraídos do livro “Sonetos do Agradecido: Maria e a Encarnação no Ícone de Vladimir”, de Antônio Carlos Santini, Belo Horizonte, Ed. O Lutador, 1999, 217 p., ilust., 21 x 21 cm.