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NOSSO CORDEIRO PASCAL FOI IMOLADO (1Co 5, 7)

Por que Deus não poderia simplesmente ter perdoado a maldade humana com um aceno de mão...?

TEOLOGIALEITURAS DA LITURGIA1CO 5PR

Bispo Robert Barron (1959 - Dias Atuais)

9/9/20244 min ler

A IDEIA DE FAZER UM SACRIFÍCIO para aplacar os poderes divinos é, para dizer o mínimo, estranha à nossa consciência contemporânea. E a ideia clássica de que Jesus realizou na cruz um sacrifício sangrento que foi, de alguma forma, exigido por seu Pai soa às pessoas hoje como, na melhor das hipóteses, incrível, e na pior, como o arquétipo da opressão patriarcal... Posso testemunhar que, quando eu estava cursando os estudos na universidade e no seminário, a noção, geralmente associada a Santo Anselmo, de que a morte de Jesus envolvia uma expiação sacrificial pelo pecado, era costumeiramente descartada em favor da teoria muito mais gentil de Abelardo, de que o amor supremo exibido na cruz é que, por sua vez, despertou em nós o amor. Ao mesmo tempo, admito que, mesmo quando aceitei essas explicações, ocorreu-me que a teoria de Abelardo não faria sentido a menos que estivesse, em certo sentido, ligada à explicação de Anselmo, pois, caso contrário, como uma figura morrendo em uma cruz romana seria vista como realizando um ato de amor?

É claro que um problema ainda mais fundamental em descartar a teoria Anselmiana é que, em seus contornos básicos, ela está inequivocamente fundamentada nas Escrituras. Ao descrever os contornos de sua missão, o próprio Jesus diz: "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (cf. Mc 10,45). E na noite anterior à sua morte, em referência ao pão e ao cálice da Páscoa, Ele claramente deu uma interpretação sacrificial à cruz que suportaria no dia seguinte: "Isto é o meu corpo, que é dado por vós"; e ainda mais revelador: "Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós" (Lc 22, 19-20). Além disso, em Efésios, encontramos o que é inconfundivelmente uma linguagem usada no templo: "Portanto, sede imitadores de Deus, como filhos amados. Caminhai no amor, como Cristo também nos amou e se entregou a Deus por nós, como oferta e sacrifício de suave odor" (Efésios 5:1-2). E em Romanos, Paulo diz: " esses são justificados gratuitamente pela graça de Deus, por meio da Redenção em Cristo Jesus. É Ele que Deus expôs como instrumento de expiação com seu sangue, mediante a fé, para demonstrar sua justiça, deixando sem castigo os pecados outrora cometidos. (Rm 3,24-25). E em Primeira Coríntios, ele recomenda: "Jogai fora o fermento, para que sejais uma massa nova, já que sois pães sem fermento. De fato, nosso cordeiro pascal, Cristo, foi sacrificado". E há muitas outras passagens do Novo Testamento que poderíamos citar. Portanto, é certamente fácil argumentar que a teoria de Santo Anselmo representa simplesmente um acréscimo medieval.

Mas eu gostaria de olhar para a teoria de Santo Anselmo com novos olhos. De acordo com suas tendências racionalistas e sob a influência de sua cultura feudal, Anselmo fala da honra ofendida de Deus Pai e da exigência, em estrita justiça, de que um preço seja pago para restaurar essa honra. Uma vez que a ofensa do pecado pertence à raça humana , um ser humano tinha que estar envolvido no pagamento, mas como a ofensa à honra de Deus é infinita, somente Deus poderia pagá-la adequadamente. Portanto, a ira justa do Pai só poderia ser acalmada pelo sofrimento e morte de alguém que é Deus e homem. Este pedaço de raciocínio teológico, que explicou com admirável economia a questão Cur Deus homo? (Por que o Deus-homem?), foi uma das grandes conquistas intelectuais da Idade Média. E sua principal virtude é que leva a sério o dano real do pecado - o que Anselmo chama de pondus peccati (o peso do pecado).

Por que Deus não poderia simplesmente perdoar a maldade humana com um aceno de mão, com um decreto estentoriano? Porque fazer isso não teria lidado com o pecado, não teria reparado o que precisava ser reparado. Anselmo ensinou que a humanidade é como um belo diamante polido que caiu na lama, na verdade até o fundo dela. Deus poderia ter declarado o diamante limpo, mas isso não teria feito nada para restaurá-lo à sua beleza primitiva. Em vez disso, Deus teve que descer à lama, na verdade até o fundo dela, a fim de apreender o diamante, e então teve que retirá-lo e limpá-lo. Eu nos exortaria a não pensar na restauração da honra do Pai como algo que ocorre dentro da psicologia do Pai, mas sim algo que acontece em nós e para nós, uma vez que a honra ou glória de Deus é precisamente que estejamos plenamente vivos, Deus é "ofendido" pelo pecado, não no sentido de que seu bem-estar subjetivo está comprometido, mas no sentido de que ele odeia e quer eliminar tudo o que prejudica suas amadas criaturas.

Confesso que a linguagem de Anselmo, especialmente para o público contemporâneo, permanece problemática. Falar de um sacrifício de sangue necessário para acalmar um senso de honra primorosamente ofendido parece projetar em Deus Pai uma boa dose de disfunção psicológica. Mas se recontextualizarmos um pouco, podemos apreciar que Anselmo está imaginando o servo sofredor de Isaías, não simplesmente como um herói humano disposto a representar toda a raça, mas como o Deus-homem tomando sobre si os pecados do mundo para tirá-los, pagar o preço, consertar as coisas.

*O Bispo Robert Emmet Barron é um bispo católico norte-americano, escritor e teólogo.

Tradução: Rafael Andrade Filho