
O CÃO DO CÉU
POESIA E FÉCULTURA
O poema narra as várias fugas que o autor usou para escapar do amor de Deus. Deus, "esse amante incomparável", é o Cão do Céu, que o persegue incansavelmente.
Eu fugi Dele, noites e dias;
eu fugi Dele, através dos anos;
eu fugi Dele, pelos caminhos labirínticos
de minha própria mente; e na névoa das lágrimas
eu sob gargalhadas escondi-me Dele.
Corri em direção do que via e esperava;
disparei, lancei-me
ao fundo de abismos titânicos de medos tenebrosos,
fugindo dos pés fortes que vinham atrás.
Mas seguindo-me sem pressa,
num ritmo imperturbável,
com um passo intencional de majestosa constância,
vinham aqueles pés – e a voz que eles traziam,
mais rápida que os pés, dizia:
“Todas as coisa te traem, a ti que Me traíste.”
Eu gritei, como um foragido,
pelas frestas do coração, de rubro acortinadas,
gradeadas pelas caridades que se tocam;
(Porque mesmo me sabendo perseguido pelo Amor,
doía em mim demais
ter de abrir mão de tudo para tê-Lo)
mas se ao menos uma fresta se abrisse
o vento aos pés Dele a tornaria uma porta;
não foge tanto o medo quanto o amor persegue.
Às margens do mundo dirigi-me,
tentei subir às trilhas das estrelas,
querendo abrigo em meio aos raios delas.
Entre as doçuras ornamentais
do dia e a prata da Lua,
eu disse à Aurora: “Vem logo!” e ao crepúsculo: “Vem logo!”
pedi ao céu que corresse para livrar-me
desse amante incomparável –
que me cobrisse com seus véus daquele olhar.
Apelei a todas as suas criaturas, para ver-me
traído pela fidelidade delas,
a inconstância delas para comigo,
sua lealdade traidora, sua leal traição.
Pedi a todas as coisas passageiras que me fizessem passar;
agarrei-me à cabeleira de todos os ventos.
Mas eles, varrendo suavemente
as extensas savanas do céu azul
ou esbarrando carroças com carroças
em que transportam os trovões nos céus,
tendo relâmpagos como tornozeleiras,
temiam ajudar-me na evasão, por medo do Amor,
que ainda vinha seguindo-me sem pressa,
num ritmo imperturbável,
com um passo intencional de majestosa constância
sobre os pés incansáveis
acima dos quais ouvi Sua voz:
“Nada te abrigará, se não me abrigares.”
Não mais busquei o caminho do qual me perdi,
nem homem, nem mulher;
mas dentro de uns olhinhos infantis
algo parecia me dizer
que olham por mim, decerto olham por mim!
Voltei-me para eles, de uma vez:
Mas nesses olhos parecendo ver
o amadurecimento das respostas,
um anjo a ergueu do chão pelos cabelos.
“Vinde então, outros filhos da natureza, (disse eu)
dai-me um pouco de vossa amizade;
deixai-me saudar-vos lábio com lábio,
devassando
as tranças errantes de nossa Senhora-Mãe,
festejando
com ela em seu palácio com paredes de vento,
debaixo de seus estrados azuis,
sorvendo imaculadamente, como de costume,
de um cálice
luzindo lágrimas na alvorada.”
Assim foi feito:
Eu era um em meio aos companheiros,
sugando a seiva oculta da natureza.
Eu conhecia todas as conjurações
diante do rosto orgulhoso do céu;
sabia como as nuvens sobem do mar ofegante,
e como tudo que nasce ou morre
nasce e morre; tomei deles
minha própria feição, triste ou divina.
Com eles me alegrava ou chorava.
Tornava-me pesado em cada noite
que houvesse tempestade por brilhar.
E diante das sublimidades do dia,
sorria com os olhos da manhã.
Triunfava e chorava com todos os tempos,
o céu e eu éramos como gêmeos;
suas doces lágrimas pelas minhas eram salgadas,
e, junto ao palpitar do coração poente
batia o meu próprio coração,
partilhando ambos o calor da vida;
mas nem assim deixei de me saber humano.
Em vão meu choro molhou a face do céu cinza;
pois não soubemos nunca a linguagem do outro,
Essas coisas e eu; pois eu falo por som
e o som delas é o movimento; falam quietas.
A natureza é uma pobre madrasta
Que não pode saciar a minha sede:
que ela solte para mim, se deve soltar,
o véu azul do céu, que ela me mostre
o seio de sua ternura;
jamais uma só gota de seu leite
matou a minha sede.
O perseguidor se aproxima mais e mais,
num ritmo imperturbável,
com um passo intencional de majestosa constância
sobre os pés incansáveis
e por cima de Seus pés
ouço sua voz que diz:
“Nada te alegrará, se não me alegrares.”
Nu, eu espero o golpe do Teu amor!
desarreaste-me, parte a parte,
e me feriste no joelho;
estou de modo indefeso.
Dormi, talvez, e acordei,
achei-me enevoado em torpor.
Na louca luxúria da mocidade,
gastei as horas propícias
e me afastei da vida; manchado e borrado,
apresento-me em meio aos anos mofados.
Jaz no chão minha juventude ferida de morte.
Meus dias se esgotaram, esvaíram-se como fumaça,
Desmancharam-se como o reflexo do Sol num córrego.
E agora até mesmo o sonho
desmaia, como o sonhador;
sem cordas o alaúde e sem vigor a mão.
Mesmo as fantasias, por cuja floração
eu cruzaria o mundo andando sobre as mãos
estão cedendo; não mais me governo,
pois a terra me pesa em lutos obscenos.
Ah! Então o teu amor é mesmo
uma erva daninha, uma verdura amarga?
Ele há de combater todas as outras flores?
Ah! Exiges,
projetista inescapável,
que se queime a madeira antes de ser lixada?
Derramei na poeira a minha chuva fresca;
e hoje o meu coração é uma fonte partida,
onde as gotas de lágrimas se estagnarão,
tendo fluído dos pensamentos úmidos
E se acumulando, antes, nos ramos da mente.
É assim; como será?
Amarga assim a polpa, como há de ser a casca?
Mal discirno o que o tempo enevoado
confunde, além de um toque de trombeta
soando dos batalhões da eternidade.
A névoa perturbada, novamente
circula as torretas lentamente
Umedecendo-as mais.
Mas já não fosse Ele quem convoca,
Ele que antes eu vira revestido
de um manto purpurado, e feito digno
como um cipreste; o nome Dele eu sei,
é o nome Dele que grita a trombeta!
Vem para receber, do homem, o coração ou a vida.
Entregues todos nós, querendo ou não,
Tuas lavouras poderão jamais
feder as coisas mortas?
Depois de tão longa caça,
Chega-me a voz de repente
E me envolve como um mar revolto:
“E por que a terra está tão podre assim,
estilhaçada em mil pedaços?
Eis que tudo foge de ti, pois tu foges de Mim!
Ser louco, fútil, lamentável!
Aonde te levaria qualquer dos teus amores?
Não vejo nenhum deles; mas Eu do nada faço o muito.”
(Assim falou.)
“E o amor humano, humano mérito requer;
quanto tens merecido
de qualquer homem o pendor mais pobre?
Coitado, não sabes
como não és merecedor de amor.
Quem acharás que Te ame, ignóbil,
Além de Mim, só de Mim?
Tudo o que Eu te tirei Eu não tirei
senão pelo teu bem,
para que o bem buscasses nos Meus braços.
Tudo que em tua criancice
pensavas ter perdido, eu guardei para ti:
Levanta, pega a minha mão e vem.”
Vi-me então não mais caído;
era o meu negrume, então,
só a sombra da sua mão,
O amor Dele oferecido?
“Ah, tolo, cego, ferido,
sou Aquele a quem buscavas!
Achas amor em ti, se amas a Mim!”