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O ENCONTRO NA SARÇA ARDENTE (Ex 3, 4)

Leclerc narra sua jornada de fé após sobreviver aos horrores dos campos de concentração nazistas. A experiência do sofrimento extremo e o silêncio de Deus o levaram a uma profunda crise existencial, questionando a validade do Evangelho. Sua posterior releitura dos Evangelhos, à luz do inferno vivido, o levou a uma nova compreensão da fé, encontrando a revelação de Deus não na ausência, mas no profundo abandono experimentado por Cristo na cruz.

PRARTIGOS

Éloi Leclerc (1921 - 2016)

Criado em uma família crente, eu recebi uma educação toda impregnada de fé. Porém, ao sair de uma juventude feliz e protegida, esperava por mim uma terrível experiência. Eu tinha pouco mais de vinte anos quando fui mergulhado no universo dos campos de concentração nazistas. Uma verdadeira descida aos infernos, no meio de dezenas de milhares de seres humanos cercados, surrados, massacrados como gado. Toda a crueldade do homem, mas também seu sofrimento, seu abandono, seu esmagamento me submergiam como uma enorme onda noturna.

Nesse cara a cara com o horror, experimentei até a angústia o silêncio de Deus, a ausência de Deus. A gente podia erguer os olhos ao céu. O céu não respondia; ele parecia não prestar atenção naquilo que acontecia. Os gritos não o atingiam.

Então, eu compreendi que se podia ser ateu, sim, ateu, por deferência a Deus. Pela honra de Deus. A fim de não o tornar cúmplice, por seu silêncio, dos crimes que eram perpetrados. Desde então, graves interrogações não cessaram de me atenazar, me perseguir. Logo tomei consciência de que aquilo que eu tinha descoberto nos campos da morte também era vivenciado em outros lugares: por toda parte onde o homem é oprimido, esmagado. Por toda parte onde ele morre sozinho, abandonado.

Esta experiência-choque foi para mim o ponto de partida de uma longuíssima estrada. Eu não podia mais ficar satisfeito com a fé recebida. Eu precisava de outra coisa. O universo abrigado de minha infância e do seminário havia explodido. Agora, era a errância no deserto. E a mesma interrogação voltava sem cessar, incontornável: “O Evangelho ainda tem sentido na noite da morte onde Deus se cala?”

Então, eu quis saber quem era o Cristo, qual era a sua mensagem, de um modo diferente da lição aprendida, por mais sábia que ela fosse. Eu reli os evangelhos ao luar sinistro dos fornos crematórios. Procurei encontrar uma presença, um rosto.

Se o Evangelho não passava de uma mensagem de amor, proveniente de um outro mundo, de um mundo estranho à tragédia do homem, à experiência da ausência de Deus, talvez ele fosse uma bela utopia, nada mais. Ora, ao reler os evangelhos, fiquei chocado pelo fato de que o homem que anuncia ao mundo a ternura do Pai pela terra é também aquele que conheceu a experiência mais crucificante do abandono e da ausência de Deus. E, pelo seu próprio abandono sobre a cruz, ele tornou presente o absoluto de Deus nos infernos humanos.

A revelação de Deus, em Jesus, não se faz pelo lado de fora, mas bem no coração da condição humana mais abandonada (cf. Fl 2,6-8). O lugar do abandono e da ausência tornou-se a Sarça Ardente.

(Do livro Le Royaume Caché, Ed. Desclée de Brouwer, Paris, 1987 – tradução de A. C. Santini))

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