O ESPAÇO SAGRADO DOS ÍCONES

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NO MUNDO DOS ÍCONESCULTURA

Antônio Carlos Santini

6/19/20247 min ler

No tempo, a duração; no espaço, a extensão. Mas o espaço não é homogêneo, alerta Paul Evdokimov: “há espaços amorfos, caóticos, e há o espaço ordenado, o espaço sagrado”. Do Chaos ao Logos, o caminho do artista que, de certo modo, repete a ação do Deus Criador. Diferentemente do espaço profano, “submisso à lei da extraposição e da exterioridade que coordena os seres, o espaço sagrado vem abolir a justaposição e realiza mais que a unidade de uma simples coexistência, mas o faz “um” em Cristo, nossa consubstancialidade n’Ele”.[1]

Na arte ocidental, os elementos espaciais costumam ser fixados em seu aspecto puramente material (naturezas mortas), empregados para compor o ponto-de-fuga (telas renascentistas) ou utilizados como pano de fundo para as figuras humanas (ver tapeçarias do século XVII e XVIII).

(Última Ceia, de Leonardo da Vinci)

(Perspectiva linear – foto Pinterest)

(Gobelin – Cena galante)

Na arte oriental dos iconógrafos cristãos, não há nada que se possa chamar de “figurativo”, pois todos os elementos são portadores de uma mensagem ou, se quiserem, de um conteúdo teológico e espiritual.

Já não está em questão escolher entre o Monte Sião e o Monte Garizim (cf. Jo 4,20-23), pois os lugares são muito mais que meros centros geográficos: tornam-se espaços cósmicos situados em uma vertical que une ao Além (ao eterno) cada ponto do mundo material. Como ensina EVDOKIMOV, “esses lugares axiais são aqueles onde todos os níveis se comunicam: o subterrâneo, a terra e o céu; sua imagem é a Montanha santa, a Árvore cósmica, o Pilar central ou a Escada. Assim, o Monte Tabor – vindo provavelmente de tabbûr, que significa “umbigo” – tal como o Monte Garizim, chamado de “umbigo da terra” (tabbûr eretz, cf. Jz 9,37)”. (2)

Vejamos em apresentação esquemática uma compreensão antiga do Universo bíblico. Nada, claro, que pretenda ser uma aproximação científica e racional do Universo assim como é hoje percebido, mas tudo inteiramente apoiado em referências bíblicas (Gn 1,1.14-18; 7,11; 15,5; Jó 25, 26, 37 e 38; 2Sm 22; Sl 33,6-7; 103; Is 40,26.28; Mt 24,35 etc.).

1. Trono divino (celeste)

2. Árvore no centro do Éden (Cruz, Trono divino terrestre)

3. Éden (Templo, Casa)

4. Jardim, cercado por um muro

5. Caminho (liga o Mar à Árvore)

6. Montanha (montes)

7. Deserto (solitudes, do pé da Montanha ao fundo do Mar)

8. Abismo sob a Montanha (Gruta, Inferno)

9. Mar ou grandes águas inferiores

10. Xeol, fundo do Abismo (Inferno)

11. Firmamento, céus

12. Águas superiores

Cena Galante Gobelin
Cena Galante Gobelin

(Chave de leitura)

É na paisagem bíblica original que o homem, enquanto um microcosmo do Universo, reencontra pela contemplação o seu sentido místico. Ao ver uma árvore, remete-se à Árvore única do Paraíso, que se projeta até a cruz do Calvário. Igualmente em relação ao mar (atravessado a pé enxuto), à gruta (onde Elias experimenta Deus, Lázaro ouve o chamado à vida e Jesus se põe novamente de pé), ao caminho (onde Saulo tem seu encontro) à montanha (onde Cristo celebra nossa salvação).[4]

Em qualquer “lugar”, o homem pode encontrar-se com seu Criador e descobrir o sentido de cada evento. Nas palavras de Paul EVDOKIMOV, “em uma tradição cristã, o Gólgota é que é o centro do mundo, ali é que Adão foi criado, a Cruz foi erguida, e a seu pé se encontrava o túmulo de Adão, tema iconográfico frequente. Igualmente, a raiz da árvore cósmica desde até o inferno e seu cume toca o céu, seus ramos simbolizam os diferentes níveis celestes (o apóstolo Paulo foi elevado até o 3º céu!)”.

O ícone da Natividade (em grego “génnesis”, isto é, nova Criação!), localizado na igreja de Maghar, na Galileia, foi “escrito” de modo a acentuar as relações entre céu e terra. O fundo dourado mostra a luz incriada, o espaço divino. Do hemisfério celeste, acima, desce um “raio da celeste luz” que recai sobre o Menino envolto em faixas. A terra tem a cor do barro, a argila adâmica original, mas as trevas da gruta humana foram iluminadas, formando-se uma bolha luminosa em torno da Mãe e do Filho.

Os elementos de composição extraídos dos Evangelhos, acentuando o realismo da Encarnação do Verbo de Deus, aparecem nos anjos de Belém, no pastor com sua trompa, nos três magos do Oriente, em João Batista (um anacronismo intencional!) vestido de pele, pronto a apontar o Cordeiro de Deus, no bucolismo do boi e do burro da gruta, nas parteiras que preparam o primeiro banho da criança em uma espécie de pia batismal e – pasmem! – em São José sendo tentado por um ser vestido de penas. Fica evidente que cada ícone é um evangelho em imagem.

Outro exemplo expressivo da utilização dos dados espaciais na iconografia do Oriente pode ser visto nesta Crucifixão (Moscou, primeira metade do século XVI).

Composição notavelmente austera, sem aqueles excessos expressionais visíveis no barroco brasileiro, este ícone mostra a cruz como “ponte” entre Deus (o mundo dos anjos, acima) e o homem (a caveira de Adão, no Xeol, ao pé da cruz). A cruz re-liga o coração de Deus ao coração da humanidade. A lembrança de Adão acentua o universalismo da salvação.

Mas a cruz é também uma ponte na história dos homens. O braço horizontal da cruz liga as mulheres, à esquerda, e os homens, à direita. São igualmente aproximados o judeu (João, apóstolo) e o romano (o centurião), fazendo eco às palavras de Paulo: “Já não há mais nem judeu nem grego; já não há mais o homem e a mulher, pois todos vós sois um em Jesus Cristo” (Gl 3,28). E, como se ainda fosse pouco, a cruz consegue aproximar a mulher pecadora (Madalena, de manto vermelho no original) e a Toda-Santa (a panhagia) Maria, a Mãe de Deus).

No fundo da composição, duas muralhas: mais baixo, o muro da cidade; mais alto, o muro do Templo de Jerusalém. Evidencia-se a dupla “excomunhão” de Cristo, rejeitado pela sociedade e pela religião. E de novo um eco paulino: “Cristo pagou para nos libertar da maldição da lei, tornando-se ele mesmo maldito por nós, pois está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”. (Gl 3,130, O Crucificado é um excluído.

O teólogo ortodoxo Paul Evdokimov comenta longamente a visão iconográfica da Crucifixão. “O Crucificado no Oriente jamais apresenta o realismo da carne esgotada e morta, nem o dolorismo da agonia. Morto e pacificado, ele nada perdeu de sua nobreza real e conserva sempre a sua majestade, como diz S. João Crisóstomo: ‘Eu vejo o crucificado e o chamo Rei’. [...] A cruz é a árvore da vida plantada no Calvário, o lugar do grande combate cósmico. Os Atos de André explicam: ‘Uma parte está plantada na terra a fim de reunir às coisas celestes as coisas que estão sobre a terra e nos infernos’. É por isso que, nos ícones, o pé da cruz mergulha em uma negra caverna onde jaz o crânio de Adão, pois o Gólgota é o ‘lugar do crânio’ (Jo 19,17).”[5]

Mas o cristão precisa erguer o olhar. Bem no alto, seguindo a esteira de S. Atanásio e de S. João Crisóstomo, o fundo luminoso do espaço celeste vem sublinhar o alcance cósmico da cruz que purifica os ares de todas as potências demoníacas. É do alto que despencam, em voo vertiginoso, os anjos espantados diante da cruz: a que ponto havia chegado o amor de Deus pelos homens!

A frequentação aos ícones sagrados é permanente escola de contemplação. Nada que lembre alguma fuga do real. Antes, este exercício nos oferece a possibilidade da correção e reeducação do olhar, devolvendo-nos a capacidade de encontrar sentido nos eventos de cada dia, recuperando o sentido profundo que escapa aos olhos cansados de uma sociedade materializada, movida pela produção e pelo consumo.

Podemos refletir com Nicolau Cabasilas: “É em função do Cristo que foi criado o coração humano, imenso escrínio vasto o bastante para conter o próprio Deus.... O olho foi criado para a luz, o ouvido para os sons, todas as coisas para o seu fim e o desejo da alma para se lançar na direção de Cristo”. Diante do ícone, céu e terra se harmonizam e nós recuperamos a via perdida da salvação.

[1] EVDOKIMOV, Paul, L’Art de l’Icône, Théologie da la Beauté, Paris, Desclée de Brouwer, 1972, p. 119.

[2] EVDOKIMOV, id. Ibidem.

[3] In Les Icônes de Fête, Clef de Lecture, Mamours, Socéval, Ed. du Moustier, p. 6 (s/ autor).
[4] EVDOKIMOV, op. cit., p. 120.

[5] EVDOKIMOV, op. cit., p. 262.