
O ESPÍRITO PLASTIFICADO
O sofrimento dos artistas plásticos para representar o mundo espiritual...
CULTURAPR
Antonio Carlos Santini
3/16/20254 min ler


Os artistas plásticos não sofrem sozinhos. Teólogos e exegetas participam de sua agonia quando tentam falar do mundo espiritual, da parusia, das realidades post-mortem. Como será o fogo do inferno? As almas condenadas queimam? Quantas asas têm um anjo (seis asas, como o serafim de Is 6,3?
O folheto de missa deste 1º Domingo da Quaresma foi ilustrado com um anjo mau tentando Jesus no deserto.
Esse “espírito” ganhou um corpo humano (que os anjos não têm!), segundo o clássico processo de antropomorfização. Mas ele traz um par de asas claras, luminosas. Parecem asas de águia, a mais orgulhosa de todas as aves. Combina com ele.
Mas é uma evidente quebra da visão tradicional sobre os demônios, sempre visualizados com asas de morcego. Os morcegos perambulam nas trevas de noite, quando reinam os fantasmas. Nada mal...


Fra Angelico, o admirável pintor das glórias da Mãe de Deus, ilustrou sua Anunciação com um arcanjo igualmente antropomórfico, que faz respeitosa reverência para a Cheia-de-Graça. Suas asas, porém, são multicores, claras, como a tradição sempre adotou. Mas terá sido realmente esta a visão da Virgem de Nazaré? Ou teria sido um raio de luz, como no belíssimo filme de Jean Delannoy? Ou apenas uma locução interior? Discutem os teólogos. Mas o Evangelho fala realmente de uma “presença”. De alguém que fala e responde a perguntas. Deixemos em paz os pintores e os diretores de cinema...
Falar sobre Deus já é difícil. Imaginem “representá-lo” com figuras, com imagens. No caso de Jesus Cristo, que se encarnou e nasceu de Mulher, que teve um corpo como o nosso, é bem fácil. São João Damaceno foi o grande defensor da representação de Cristo por imagens. Mas e a Trindade divina?
Pois é. O Pai não tem corpo, não se encarnou. No entanto virou moda representar o Pai Eterno como um velho de barbas brancas. Mas ele não é ETERNO? Será que o eterno envelhece e sofre os estragos do tempo? Claro que é um completo absurdo cometido pelos artistas, pintores e escultores...


O absurdo é ainda maior quando o artista ousa “traduzir” o mistério da Santíssima Trindade por meio de um monstrengo inaceitável: uma criação teratológica com três narizes e quatro olhos! (figura ao lado)
O iconógrafo Andrei Roublev foi mais feliz. Diante da impossibilidade de representar diretamente a Santíssima Trindade, ele o fez indiretamente, utilizando a imagem dos três visitantes a Abraão na tenda de Mambré [(cf. Gn 18) - figura abaixo]. Existem estudos muito interessantes sobre este ícone, um deles em meu livro “No Mundo dos Ícones” (Ed. O Lutador, Belo Horizonte).






O que mais me incomoda é a imaginação solta do artista, às vezes em choque com os dados da Bíblia. É o caso das Bodas de Caná (Jo 2), quando o texto grego fala de “talhas de pedra” [lithinai], com uma capacidade em torno de 600 litros, no mínimo. Aí, vem o pintor e desenha meia dúzia de cântaros de barro, pouco maiores que uma garrafa de Bordeaux. Talvez seja abstêmio e não goste de vinho...
A Terceira Pessoa também é Espírito, logo, não representável diretamente. Daí o recurso a símbolos mais ou menos aceitáveis: a pomba do batismo no Jordão, as línguas de fogo de Pentecostes, a água corrente, o azeite etc.
Pode ser bonitinho, mas é falso. E aqui entramos na velha discussão entre os realistas e os românticos do século XIX, com a qual Eça de Queiroz nos causou belas gargalhadas...
Os tropeços dos artistas não poupam sequer as crianças, pois as ilustrações de livros de catequese também deformam a realidade. É o caso do profeta Jonas desenhado com uma baleia... quando a Bíblia fala de um “grande peixe”. Em tempo, a garganta das baleias, que se alimentam de krill, é uma passagem estreita, o profeta ficaria entalado...
Igualmente entalados ficam os artistas plásticos, tentando dar forma àquilo que não tem forma, mas é incorpóreo, puro espírito. Deve ser por isso que sempre fui um péssimo desenhista...





