
O ÍCONE DA TRINDADE
CULTURANO MUNDO DOS ÍCONESMT 19GN 11-20


1427-1430
A Trindade
Andrei Roublev
Obra-prima da iconografia cristã de todos os tempos, esta obra genial de Andrei Roublev [† ca. 1427/1430] se encontra hoje na Galeria Tretiakov, em Moscou. O iconógrafo inspirou-se na passagem bíblica de Gn 18,1-15, cena conhecida como “a hospitalidade de Abraão”.
Das três Pessoas da Santíssima Trindade, somente o Filho tem um corpo humano suscetível de figuração, em virtude de sua Encarnação (cf. Jo 1,14), nascendo de Mulher. Sendo o Pai e o Espírito seres incorpóreos, puramente espirituais, seria uma heresia representá-los diretamente por uma imagem humana.
Assim, Roublev recorreu a uma representação indireta, figurando os três anjos que visitaram Abraão em Mambré, nos quais os Padres da Igreja identificaram a própria presença do Deus Trino. Como se lê na nota da Bíblia de Jerusalém, “nestes três homens aos quais Abraão se dirige no singular, muitos Padres viram o anúncio do Mistério da Trindade, cuja revelação é reservada ao Novo Testamento”.
Foi o caso de S. Gregório de Nissa (Séc. IV), S. Cirilo de Alexandria (Séc. V) e Procópio de Gaza (Séc. VI), posteriormente acompanhados por S. Ambrósio de Milão e S. Agostinho.
Embora não haja consenso na identificação das três Pessoas no ícone, preferimos ver a figura do Pai no anjo à esquerda, que é o foco para os olhares das outras duas Pessoas, pois dele tudo procede. Sua mão direita envia ao mundo o Filho Salvador e o Espírito da verdade. Sobre sua cabeça, a casa de Abraão, com a porta e a janela abertas, lugar de encontro e reunião de toda a humanidade.
No centro, com a estola sacerdotal (o clavus) no ombro direito, a imagem do Filho voltado para o Pai, com um olhar de amor que aquiesce a seu desígnio da salvação. Os dois dedos da mão direita apontam para sua dupla natureza, divina e humana. Sobre ele, a árvore da vida, que estende uma ponte entre o Éden, onde a humanidade decaiu, e a cruz do Calvário, que a regenerou.
À direita do espectador, figura-se o Espírito Santo, tendo no alto um rochedo inclinado para a esquerda, aludindo ao Sinai e ao Tabor, os montes das grandes teofanias. A distorção de seu dedo afilado permite reconhecê-lo como o “dedo da mão direita do Pai” [digitus paternae dexterae], citado na clássica invocação do “Veni, Creator”.
As três figuras têm na mão o bastão de peregrino, pois Deus “viaja” na direção da humanidade a ser salva. Estão reunidas em torno de um altar, cuja parte frontal aberta é um convite à comunhão trinitária. O retângulo à frente é uma pedra em três dimensões, representando a humanidade reunida no Pai, no Filho e no Espírito Santo.
Sobre o altar, um cálice eucarístico onde se vê um cordeiro pascal, imolado por nós, cujo Sangue sela a Nova e Eterna Aliança. “O cálice, ponto de convergência dos Três, contém o mistério do Amor do Pai crucificante, o Amor do Filho crucificado, o Amor do Espírito triunfante pela força da cruz” (Metropolita Philareno de Moscou).
A análise da estrutura do ícone permite ver um círculo que engloba as três Pessoas, seguindo a linha das costas das figuras laterais, e tendo seu centro na mão direita do Filho. Nota-se também a silhueta de um cálice que parte da base do altar e acompanha os contornos internos do Pai e do Espírito.
As autoridades do governo soviético, ateu e anticristão, reconheceram o valor estético deste ícone e patrocinaram sua restauração. Só não imaginaram que o povo russo, ao contemplá-lo, viesse a reencontrar no ícone a sua alma perdida.
É importante saber...
“A primeira coisa, a mais evidente que transparece deste venerado ícone é que Deus é comunhão, é amor (1Jo 4,8.16), um amor que encurta as distâncias (Lc 15,4-10), mesmo as mais abissais (Sl 139,7-10; Jo 3,16) e que, na humildade, se faz hóspede (Mc 2,15-17; Fl 2,6-8).” (T. Spidlik e M. I. Rupnik) [ACS]