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OUVINDO, VENDO E ADORANDO A DEUS (Dt 4)

O coração humano busca a união com Deus, que é invisível e invisível permanece, e essa busca exige de nós uma reverência à sua natureza e à sua revelação. Como nos relacionamos com Deus através dos sentidos.

LEITURAS DA LITURGIATEOLOGIAPRDEUTERONÔMIO

Bispo Robert Barron (1959-)

"“Então, o Senhor falou com você do fogo. Vocês ouviram a voz de palavras, mas não viram forma nenhuma; só houve uma voz” (Dt 4,12).

O CAPÍTULOA 4 DO DEUTERONÔMIO contém passagens de importância crucial para a compreensão de Israel de si mesmo e do Deus que o convocou. Moisés diz ao povo que, se seguirem os mandamentos do Senhor, as nações ao redor dirão:

“Certamente esta grande nação é um povo sábio e prudente! Pois que outra grande nação tem um deus tão próximo quanto o Senhor nosso Deus está sempre que clamamos a ele? E que outra grande nação tem leis e ordenanças tão justas quanto toda esta lei que hoje apresento a vocês?” (Dt. 4,6–8).

Observamos que a grandeza de Israel não é uma função de sua força militar (embora demonstre essa força de tempos em tempos), nem de sua importância política (embora, sob Davi e Salomão, ela venha a alcançar por um breve período um certo nível de relevância), nem de suas realizações culturais (embora seus escritos sejam de qualidade literária elevada e sua arquitetura sagrada seja amplamente admirada), mas sim de sua receptividade para ouvir a voz de Deus e de sua abertura em seguir os mandamentos divinos. Se eu puder colocar de modo algum, a importância de Israel será passiva, e não ativa. Seu centro de gravidade estará fora deles mesmos, e eles prosperarão na medida em que aceitarem comandos de outro.

Jonathan Sacks[1] distinguiu, de maneira famosa, entre a cultura grega antiga, que é ordenada ao visível, e a cultura judaica antiga, que é ordenada ao audível. Se o olho é o principal órgão da sabedoria grega — e, de fato, a centralidade do eidos (forma) de Platão indica isso —, então o ouvido é o principal órgão da sabedoria judaica. Moisés esclarece isso no quarto capítulo de Deuteronômio, lembrando o povo:

“Então, o Senhor falou com você do fogo. Vocês ouviram a voz de palavras, mas não viram forma nenhuma; só houve uma voz” (Dt 4,12).

Como Deus é o Criador de todas as coisas finitas e condicionadas, ele não pode ser, ele próprio, uma coisa finita e condicionada — um ser, por mais exaltado que seja, entre muitos. Ele não pode aparecer entre os objetos dentro do universo que Ele mesmo criou na sua totalidade — e é por isso que todas as tentativas de vê-lo claramente são proibidas na literatura bíblica. O audível, que é ouvido e depois rapidamente desaparece na obliteração, simboliza melhor a comunicação espiritual do que o visível, que perdura ao longo do tempo.

Essa preferência por ouvir ao invés de ver é complicadíssima dentro da dispensação cristã, pois a Encarnação constitui o que São Paulo memoravelmente chamou de formação de um eikon (imagem) “do Deus invisível” (Cl 1,15). Certamente, o Deus de Israel, na medida em que é Criador do universo visível, permanece na sua própria essência invisível; contudo, ele se fez visível, na humanidade de Cristo, que usa para seus propósitos icônicos. Toda arte e iconografia cristãs decorrem dessa afirmação paulina fundamental, como é evidente nos escritos anti-iconoclastas de João Damasceno: podemos fazer imagens de Cristo e dos santos, pois Deus já fez dele mesmo uma ícone.

A partir dessa verdade fundamental sobre Deus, decorre o primeiro e mais básico mandamento dado ao povo de Israel:

“Visto que não viste forma alguma quando o Senhor falou contigo no Horebe, toma cuidado e guarda bem a tua alma, para que não te corrompas, fazendo para ti um ídolo, na forma de qualquer figura — a aparência de homem ou mulher, a aparência de qualquer animal que está na terra, a aparência de qualquer pássaro alado que voa no ar, a aparência de qualquer coisa que rasteja sobre o chão, a aparência de qualquer peixe que está nas águas debaixo da terra” (Dt. 4,15–18).

Mesmo o leitor mais superficialmente atento notará a semelhança entre essa articulação extensa da proibição contra a idolatria e os versículos iniciais do livro de Gênesis. Como argumentei acima, o relato da criação equivale a uma dessacralização da criação, ainda que demonstre a bondade do mundo e seu propósito no plano de Deus. Como nenhuma criatura é divina, a fortiori, nenhuma representação ou imagem de uma criatura pode se tornar objeto de adoração.

Se posso expressar esse princípio em linguagem mais psicológica e espiritual, nada na faixa visível poderia responder ao mais profundo anseio do coração humano. Moisés conclui que o povo deve evitar todas as formas de idolatria “pois o Senhor teu Deus é fogo consumidor e um Deus zeloso” (Dt. 4,24). Mais uma vez, quero ressaltar que essa leitura não deve ser vista apenas como um comentário sobre a psicologia de Deus, mas sim como uma observação sobre a física espiritual. Quando desviamos nosso coração de Deus e começamos a adorar algo que não seja Ele, somos destruídos; nos desintegrados; somos consumidos.

Essa noção de destruição espiritual e de risco de desvirtuamento é central para a compreensão do Deus bíblico e de sua relação conosco. O Deus que é fogo consumador é, ao mesmo tempo, um Deus de zeloso amor e de justiça. Seu zelo nos chama à fidelidade, à fidelidade radical de não colocarmos nada no lugar d’Ele, pois tudo que colocamos na nossa idolatria nos leva à perdição e ao afastamento de sua presença. Assim, a presença do Deus que é fogo e chama é também uma advertência contínua ao povo de Israel para manter a pureza de sua adoração e de sua relação com o Senhor.

Por fim, essa mensagem do Deuteronômio reforça a ideia de que a verdadeira sabedoria e a verdadeira espiritualidade estão na escuta e na fidelidade ao Deus que se revela de forma audível, em palavras e na sua Palavra, e não na visão de imagens ou formas, que nada podem responder ao mais profundo desejo do coração humano. Em última análise, o coração humano busca a união com Deus, que é invisível e invisível permanece, e essa busca exige de nós uma reverência à sua natureza e à sua revelação.

[1] Jonathan Sacks foi um destacado rabino, filósofo, teólogo e escritor britânico, conhecido por suas contribuições ao judaísmo contemporâneo e por seu trabalho de diálogo inter-religioso.

Excerto traduzido e adaptado do livro: BARRON, Robert. The Great Story of Israel: Election, Freedom, Holiness. Edição em inglês. Editora: Word on Fire, 2022. p. 115-118

Seleção, adaptação e Tradução: Rafael Andrade Filho

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François Perrier – Pintor (francês) / 1642

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