
TEOFANIA - O ÍCONE DO BATISMO DE CRISTO
NO MUNDO DOS ÍCONESCULTURAJO 3


O ícone e a liturgia
Gênero de arte onde a “inspiração” se submete com reverência a cânones rígidos e estabelecidos ao longo dos séculos, a iconografia do Oriente cristão apresenta um elenco de temas relativamente limitado. Segundo observa o historiador e crítico de arte NIGEL CAWTHORNE, “os primeiros ícones só representavam Cristo, a Virgem e os apóstolos”. Apenas com o decorrer do tempo é que passaram a “ilustrar igualmente as doze grandes festas do ano litúrgico: as quatro festas da Virgem [Natividade, Apresentação no Templo, Anunciação, Dormição], as seis festas de Cristo [Natividade. Apresentação no Templo, Batismo, Transfiguração, Entrada em Jerusalém, Ascensão], bem como o Pentecostes e a Exaltação da Cruz”.[1]
Naturalmente, esta especialização temática tem sua explicação: enquanto no Ocidente a arte sacra deslizava com frequência para o mero decorativismo, o que gerou a gula insaciável por temas e motivos sempre novos, os ritos cristãos do Oriente – bizantino, grego, russo etc. – imprimiram na iconografia um notável caráter litúrgico. Ali, a “festa” incluía necessariamente o incenso, os tropários e os ícones entre os ingredientes da celebração. E já nos séculos IV e V, Santo Agostinho e Santo Epifânio confirmavam uma explosão do culto dos ícones. No início do século VI – registra CAWTHORNE, Hipácio de Éfeso nos fornece o primeiro testemunho da prática da proskynesis, com os fiéis prosternados diante do ícone sagrado.
Só posteriormente surgiriam novos topói iconográficos, como a Descida de Cristo aos Infernos [o equivalente à Ressurreição no Ocidente], a Reanimação de Lázaro, a Última Ceia ou a Natividade de São João Batista. Mais recentemente, a partir do século XVI, os iconógrafos adotaram maior liberdade na seleção temática, recorrendo a cenas do Antigo Testamento [como a hospitalidade de Abraão, eternizada por Andrey Roublev no ícone da Trindade] ou a episódios da vida dos santos, e mesmo às escrituras apócrifas.
A imagem que revela
A fonte de inspiração para o Ícone do Batismo de Jesus costuma ser o Evangelho de São Mateus (3,13-17).
“Então, Jesus veio da Galileia para o Rio Jordão, até junto de João, para ser batizado por ele. Mas João queria impedi-lo, dizendo: ‘Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?’ Jesus, porém, respondeu-lhe: ‘Por ora, deixa, é assim que devemos cumprir toda a justiça!’ E João deixou. Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água, e o céu se abriu. E ele viu o Espírito de Deus descer, como uma pomba, e vir sobre ele. E do céu veio uma voz que dizia: ‘Este é o meu Filho amado; nele está meu pleno agrado.’”
A economia de detalhes não impede que o texto nos coloque diante de um momento revelador. Deus é Pai: tem um Filho. Deus é Trino: nas águas do rio, o Filho; da nuvem, que revela ocultando, a voz é a do Pai; e o Espírito Santo se deixa ver como uma pomba – a mensageira do Dilúvio – em voo vertical. Esta “revelação inclui o realismo da encarnação do Verbo, pois é um homem que o Batista vê entrar no Jordão, mas esse homem tem o próprio Deus como Pai. Natural que os cristãos do Oriente chamem a este ícone de “teofania das águas” ou “Epifania”.
Eis alguns fragmentos de um comentário de JEAN-YVES LELOUP sobre o ícone: “A água está na origem do mundo; o Jordão, na origem dos Evangelhos – escreveu São Cirilo de Jerusalém (†387). Foi no Jordão que Yeshua se revelou como Filho de Deus e inaugurou sua missão. Encontramos aqui a sombra da gruta da Natividade. A luz deve descer novamente às profundezas da matéria. Com a Natividade, a visita dos magos e as bodas de Caná, o dia do batismo é chamado pela Tradição de “Teofania” ou “Epifania”, ou seja, manifestação de Deus. Deus se manifesta neste homem que, em tudo, comporta-se como um homem, a ponto de pedir a João um batismo de purificação. Yeshua desce até o grande rio da humanidade. [...] Assume sua herança, aquela da humanidade, mergulhando nas águas carregadas de memória – essas águas e esse rio que simbolizam o inconsciente pessoal e coletivo: ‘É preciso que toda a justiça se realize’; [...] O ícone nos lembra que, em Cristo, o céu está aberto: a relação entre Deus e o homem está restabelecida. O homem não é somente uma criatura, uma relação de causa e efeito, mas um filho, uma relação amorosa e filial. Por meio de seu movimento de descida e subida, este ícone da teofania anuncia a descida aos infernos e a Ressurreição. Convida-nos a mergulhar nas profundezas e a abrir nossa inteligência à luz para que o Sopro de vida restabeleça a ligação com ‘Aquele que é’ no Altíssimo e no mais profundo, e que assim nós reencontremos nossa estatura de filhos, de ser humano, à imagem e semelhança de Deus”.[2]
Quando Deus desce
Nas várias versões do ícone do Batismo de Jesus (p. ex. na figura abaixo), ao lado de elementos fixos e constantes (água, rocha, anjos, o Batista, a pomba, a nuvem etc.), prevalece em todos os casos uma construção nitidamente verticalizada, que remete à “descida” do Filho, a sua kênosis, e à re-ligação do canal amoroso entre o coração de Deus e o coração do homem. O iconógrafo quer abrir os olhos do contemplativo para a iniciativa divina ao vir ao nosso encontro.


Não por acaso, a palavra Jordão [Yordan, no hebraico] significa exatamente “aquele que desce”. Isto nos anima a desviar os olhos do elemento líquido e contemplar decididamente a Jesus, “o que desceu do Pai”, o “verdadeiro Jordão”, cuja água viva vem refazer nossa existência e nos garantir a salvação no árido deserto do pecado.
Na meditação de THOMAS KALA, “a pronunciada composição vertical do ícone sugere a descida de Deus e a subida da humanidade. O Jordão aparece em estreita ravina entre as montanhas sombrias. Jesus desce a este sepulcro aquoso com sereno poder e majestade. A caverna que se abre a seus pés é um lembrete do inferno, de onde o Senhor ressuscitado libertará nossos primeiros pais. A descida de Cristo às águas prefigura a derrota dos poderes do mal e o triunfo da verdade”.[3]


Deste modo, descendo do “alto” [ανωθεν, cf. Jo 3,3], na forma visível de pomba, segundo o testemunho dado por João Batista, o Espírito Santo vem “ungir” o Ungido, o próprio Messias. Em determinadas versões do mesmo ícone (ver figura) a trajetória descendente da pomba é realçada por um traço que vem a se partir em três, em clara alusão ao Deus Uno e Trino. À esquerda, João Batista estende sua mão, no gesto de abençoar / batizar, mas tem os olhos fitos na pomba que desce: “João ainda testemunhou: ‘Eu vi o Espírito descer do céu, como pomba, e permanecer sobre ele. Pois eu não o conhecia, mas aquele que me enviou disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, é ele quem batiza com o Espírito Santo’. Eu vi, e por isso dou testemunho: ele é o Filho de Deus!”
À direita do ícone, um grupo de anjos inclinados aponta para o espanto experimentado pelos mensageiros celestes diante da impensável humilhação! O “rebaixamento” do Verbo de Deus que assume o “húmus” adâmico, humanizando-se em tudo (cansaço, fome, sede, dor e morte...), exceto o pecado. O primeiro anjo costuma trazer nas mãos uma toalha vermelha, alusão à morte sacrificial de Jesus e a seu sangue derramado pro multis. É que o Jordão significa, ao mesmo tempo, o líquido amniótico do novo Adão e sepulcro líquido da vítima do Calvário. A silhueta das barrancas do Rio Jordão já foi comparada ao desenho de um colo de útero, pois estamos diante de um autêntico parto (cf. Rm 8,22), o nascimento do Novo Adão, o primeiro exemplar de uma humanidade absolutamente nova.
Em sua esplêndida nudez, Jesus humano estende a mão direita para abençoar as águas. Bem ao contrário do sacramento cristão, quando as águas purificam o batizando, aqui é Jesus Cristo que santifica as águas, antecipando a liturgia da Vigília Pascal, quando o Círio [= Cristo!] é imerso nas águas com que os catecúmenos serão batizados. O Santo santifica tudo o que ele toca. E se, muitos séculos antes, o sírio Naaman foi lavado de sua lepra nas águas do mesmo Jordão, aquele general, depois de instruído pelo profeta Eliseu, “sacava por conta”, em vista de um depósito de salvação que Jesus Cristo só viria a fazer séculos mais tarde...
No profundo das águas – que os antigos consideravam como o reino da morte e do mal, espaço do Leviatã e do Behemot (cf. Jó 40 e 41) – misturados aos seres subaquáticos, os ídolos do paganismo [entidades marinhas, tritões, ninfas e nereidas, e o próprio Netuno / Poseidon] se encolhem assustados, à chegada do Vencedor. É que nada escapa ao domínio do Salvador, nenhuma área do Cosmo, que “geme em dores de parto”, permanece alheia à salvação. O Autor anônimo de “Baptême” comenta: “As águas nas quais desce o Cristo têm um valor universal. A água do Jordão representa todas as águas, entre as quais as águas primordiais, o oceano inferior que abriga em seus abismos forças potencialmente destruidoras e mortais, assim como o foram notadamente as águas do Dilúvio e as do Mar Vermelho. Mas estas águas significam principalmente o “lugar” de vida interior para onde regressa Adão por ocasião de sua queda. O homem – microcosmo – traz em si as diferentes etapas da Criação, que o influenciam segundo a qualidade de relação que ele mantém com Deus, sendo sua finalidade a união com Ele pelo Espírito Santo”.[4]
Testemunhas do mistério
Existe uma curiosa versão do ícone do Batismo de Jesus [figura abaixo] que traz novos elementos acrescentados à tradição ortodoxa grega e bizantina. Originário do Líbano, em ambiente católico maronita, este ícone não mostra o outro e a luminosidade típica dos ícones tradicionais.


Como comenta Irmã Agnès-Mariam de la Croix, em artigo da revista “Feu et Lumière”[5], “à esquerda do Cristo nós vemos seis anjos. Estes são os anjos ‘protoctistas’[6] próprios da tradição judeu-cristã. [...] No pensamento judeu-cristão, os seis anjos, associados à primeira criação, devem sê-lo naturalmente à segunda, muito mais importante, que era o Batismo. Esta ideia é que influenciou a iconografia do Batismo, onde se representa a Cristo, no Jordão, cercado de anjos. Eles assumem a atitude de servidores e testemunhas do mistério. Isto é significado pela toalha que eles trazem (para enxugar o Cristo ao sair da água, mas também em sinal de infinita reverência perante o mistério de rebaixamento do Filho de Deus. De fato, as mãos escondidas expressam a reverência e a submissão”.
Desde o AT, os anjos foram educadores dos homens, como na viagem de Tobias. A liturgia narrada no Apocalipse não dispensa a presença dos anjos. Em cada Eucaristia, celebramos na presença de anjos e arcanjos, dominações e potestades...
Uma escola de teologia
Mesmo o povo iletrado foi capaz de “ler” a teologia dos ícones do Oriente cristão. Depois de contemplá-los na liturgia comunitária, elevados na iconóstase dos templos ou transportados em procissão, os fiéis pediam aos monges pequenas reproduções para o culto doméstico, quando a família se reunião em oração diante do ícone, acesos os círios vigilantes. Esses mesmos fiéis que resistiram a mais de 60 anos de ateísmo estatal na União Soviética, mantendo viva a chama de fé, pronta a rebrilhar com a queda do muro e a fragmentação do Império.
O teólogo ortodoxo Paul Evdokimov, autor de um estudo clássico sobre ícones, comenta a riqueza inscrita no ícone do Batismo de Jesus: “Até o século IV, a Natividade e o Batismo do Senhor eram celebrados no mesmo dia. Sua unidade é ainda visível na estrutura semelhante dos Ofícios das duas festas, mostrando um certo acabamento do evento do Natal no Batismo. ‘Em sua Natividade – diz S. Jerônimo – o Filho de Deus veio ao mundo de modo escondido; em seu Batismo, ele apareceu de forma manifesta’. Assim também São João Crisóstomo: ‘A Epifania não é a festa da Natividade, mas a do Batismo. Antes, ele era desconhecido do povo; pelo Batismo, ele se revela a todos’”.[7]
Prossegue o mesmo Evdokimov: “Todo o simbolismo denso e acumulado do Batismo que o ícone da festa nos mostra, faz compreender a terrível amplitude deste ato: é já a morte sobre a Cruz; dizendo a São Joao: ‘Convém que se cumpra toda a justiça’ (Mt 3,15), o Cristo antecipa a palavra extrema que ressoará no jardim do Getsêmani: ‘Pai, que tua vontade seja feita...’ A correspondência litúrgica das festas o sublinha explicitamente: assim também os cânticos do Ofício de 3 de janeiro apresentam uma analogia chocante com os da Quarta-feira Santa, o de 4 de janeiro com o da Quinta-feira Santa, e o Ofício de 5 de janeiro com os da Sexta-feira Santa e do Sábado da Paixão”.
E ainda: “São João Batista está revestido de um ministério de testemunho: ele é a testemunha da submissão de Cristo, de sua última kênosis. Em João Batista, porém, enquanto Arquétipo, enquanto representante da espécie humana, é toda a humanidade que testemunha o Amor divino. A Filantropia de Deus culmina no ato do Batismo, ‘cumprimento da justiça’, com a morte e a ressurreição em seu termo, cumprimento da decisão pré-eternal que contemplamos no ícone da Trindade”.


Evidentemente, este tipo de “leitura” dos ícones estende uma ponte diacrônica entre os dois Testamentos, associando promessa e cumprimento, figura e evento, esperança e plenitude. De fato, o ícone do Batismo de Jesus traz ressonâncias da Primeira Aliança, como, aliás, todo Evangelho, seja em palavras, seja em imagens. Outro estudioso – famoso por sua magistral síntese sobre a teologia do ícone -, o russo Leonide Ouspenski, escreve sobre esses ecos do Antigo Testamento:
“O ícone da Teofania é um dos ícones que mais analogias possui com as prefigurações veterotestamentárias. Assim, além dos detalhes mencionados, nós vemos muitas vezes, aos pés do Salvador, entre os peixes que nadam no Jordão, dois pequenos personagens: um homem que Lhe dá as costas, uma mulher seminua que corre ou, às vezes, está assentada sobre um peixe. (Ver figura abaixo.)


Por tudo isso, a “leitura” do ícone do Batismo de Jesus deve ser feita, preferencialmente, em movimento descendente, a partir da nuvem celeste até o obscuro abismo que prefigura o Xeol. O batismo de Jesus é, de fato, um mergulho abissal, quando o Filho de Deus viaja desde seu macrocosmo divino até o microcosmo humano, o transcendente feito imanente, pondo-se em definitivo ao alcance dos homens. Vale lembrar que a palavra “batismo”, que veio dar nome ao primeiro sacramento dos cristãos, provém do verbo grego “baptizô” [βαπτίζω], com o sentido geral de “ser mergulhado”, “submergido”.
Assim, a esfera celeste – ainda que entrevista apenas parcialmente – é o “lugar” de onde se ouve a Voz divina, a mesma Voz que falava a Moisés no Sinai e nos sonhos dos profetas, quando Adonai se comunicava quase exclusivamente à audição dos homens: “Shemá, Israel!” Só que, agora, em pleno Evangelho, a Voz representada nos ícones por linhas ou faixas que saem da nuvem, ressoa para fazer a identificação do homem que está nas águas. Enquanto o Batizador diz: “Eis o Cordeiro de Deus”, o Pai vai muito além: “Eis o meu Filho!”
A parte superior traz os testemunhos de Davi (à esquerda) e de Isaías (à direita). [Lembrar que os semitas escrevem e leem da direita para a esquerda.] O profeta tem nas mãos um filactério escrito em siríaco, onde se lê Isaías 12,3: “Com alegria tirareis a água das fontes da salvação”. Já o rei Davi, rei dos judeus, tem na mão esquerda um pergaminho escrito em árabe (!), com fragmentos do Salmo 114, que a liturgia bizantina adota na festa do Batismo: “O mar viu e se retirou, o Jordão voltou para trás. [...] Que há contigo, ó mar, para fugires / e tu, Jordão, por que voltas para trás?” A convivência de idiomas no mesmo ícone (siríaco, árabe e o grego do título – baptísis) recordam que o Líbano já foi um espaço onde católicos, muçulmanos e ortodoxos viviam em paz...


Uma liturgia cósmica
Depois de tudo isto, não é possível falar dos ícones do Oriente como “imagens religiosas”. Todo ícone é um Evangelho em imagem: brota da Palavra meditada e oferece a mesma Palavra em contemplação, acrescentando à audição da Primeira Aliança a visão iluminada da Nova Aliança, quando, por força da encarnação, não apenas ouvimos a Deus, mas podemos ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo com as mãos na pessoa de Jesus Cristo. Nos termos do apóstolo João, “o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e o que nossas mãos apalparam da Palavra da Vida – vida esta que se manifestou, que nós vimos e testemunhamos, vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós –, isso que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco”. (1Jo 1,1-4.)
Depois da encarnação – depois que o Logos eterno assumiu um corpo, alimentou-se de matéria, deu seu sangue por nós – o mundo dos espíritos angélicos e o mundo dos homens carnais uniu-se em definitivo, para sempre. A partir de então, todo o Cosmo participa do louvor e da ação de graças entoados pelos homens.
Infelizmente, já ouvi críticas e deboches contra um sacerdote que ama os ícones. Colegas de ministério o tacharam de “devocionalismo”. Certo, não ouviram a voz do Papa, que chama nossa atenção para a verdadeira liturgia, que só se realiza plenamente em tonalidade cósmica, entre anjos e arcanjos, em comunhão com toda a Criação, transfigurada no pão e no vinho, fruto da terra e do trabalho do homem. Homem e terra como parceiros da mesma obra...
Em sua Carta apostólica Orientale Lumen [2/05/95], o Papa João Paulo II escrevia, com o subtítulo “uma liturgia para o homem inteiro e para o cosmo inteiro”: “Na experiência litúrgica, Cristo Senhor é a luz que ilumina o caminho e desvenda a transparência do cosmo, precisamente como na Escritura. Os acontecimentos do passado encontram em Cristo o significado e a plenitude, e a criação revela-se por aquilo que é um conjunto de traços que somente na liturgia encontram a sua perfeição, a sua plena finalidade. Eis o motivo pelo qual a liturgia é o céu sobre a terra, e nela, o Verbo que assumiu a carne permeia a matéria de uma potencialidade salvífica que se manifesta plenamente nos sacramentos: aqui a criação comunica a cada um o poder que lhe foi conferido por Cristo. Assim o Senhor, imerso no Jordão, transmite às águas um poder que as habilita a serem lavacro de regeneração batismal”. (OL, 11.)
Quando outro notável sucessor de Pedro, o Papa Paulo VI, recordou a necessidade de a Igreja “respirar com os dois pulmões”, apontando para a necessária aproximação entre os cristãos do Oriente e do Ocidente, sem dúvida ele pensava na riqueza de ambas as tradições e no empobrecimento vivenciado por cada um dos lados ao se privar dos tesouros que o Cisma tirou de circulação. Hoje, com a lenta, mas crescente aproximação entre latinos e orientais, mas também pela contribuição dos irmãos orientais exilados no Ocidente, o tesouro dos ícones reaparece aos nossos olhos.
João Paulo II faz o elogio da herança oriental: “Neste quadro, a oração litúrgica no Oriente mostra uma grande capacidade de envolver a pessoa humana em sua totalidade: o Mistério é cantado na sublimidade dos seus conteúdos, mas também no calor dos sentimentos que suscita no coração da humanidade que foi salva. Na ação sagrada, também, a corporeidade é convidada ao louvor, e a beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada, mostra-se em toda parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes. O tempo prolongado das celebrações, a repetida invocação, tudo exprime um progressivo compenetrar-se da pessoa inteira no mistério celebrado. E a oração da Igreja torna-se, assim, já participação da liturgia celeste, antecipação da bem-aventurança final”. (OL, 11.)
Estes detalhes ilustram textos do Velho Testamento que fazem parte da liturgia da festa e são prefigurações proféticas do Batismo: ‘O mar viu e se afastou, o Jordão voltou para trás’ (Sl 113[114]. O personagem masculino, que é uma alegoria do Jordão, explica-se por estas palavras: ‘Outrora, o Jordão retornou para sua nascente em contato com o manto de Elias, quando Elias foi arrebatado, e suas águas se dividiram em duas partes. Sob seus passos, o rio tornou-se uma estrada firme para realmente figurar o batismo, graças ao qual nós atravessamos os vagalhões instáveis da vida. O personagem feminino é uma alegoria do mar e indica outra prefiguração do Batismo – a travessia do Mar Vermelho pelos judeus.”[8]


Enfim, não somos anjos. A ilusão de encontrar um cristianismo quimicamente puro ainda leva muita gente a sonhar com asas e travestir-se em espíritos puros. Na contramão, o Filho de Deus assume um corpo, trabalha com as mãos e fala em um idioma de homens e mulheres. Quando, na cruz, ele clama: “Tenho sede!”, já não podemos ignorar nossa missão humana em um mundo material. A Criação espera pela voz dos homens, pela dança das mulheres, para que também as montanhas batam palmas ao Criador de tudo.
A arte sacra reaviva nossa fé na encarnação do Verbo. E, como escreveu o grande Dostoiévski, “a beleza salvará o mundo...”
[1] N. CAWTHORNE, L’Art des Icônes, Paris , Ed. Solar, 2000, p. 10.
[2] J.-Y. LELOUP, O Ícone, uma Escola do Olhar, São Paulo, Ed. UNESP, 2006, p. 57.
[3] T. KALA, Meditações sobre os Ícones, São Paulo, Paulus, 1995, p. 49-51.
[4] N.N., Baptême, Namur, Ed. Du Moustier, 1990, p. 8.
[5] A. M. de la CROIX, “Une icône bi-face au Liban: Notre Dame de Kaftoun", Feu et Lumière nº 152 (1997) 45.
[6] Protoctistas, ou “primeiros a serem criados”, são anjos mencionados nos apócrifos e no “pastor de Hermas”, e nomeados como Miguel, Gabriel, Uriel, Absasax, Rafael, Azrael. Sua tarefa será cuidar da obra de cada um dos dias da Criação.
[7] P. EVDOKIMOV, L’Art de l’Icône:Théologie de la Beauté, Desclée de Brouwer, 1972, p. 239ss.
[8] L. OUSPENSKI e V. LOSSKY, Les Sens des Icônes, Paris, Ed. Du CERF, 2003, p. 152.