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UM PAR DE BOTAS (Mc 10, 17-30)

Conto extraído do Livro "O Facão e pequenos outros contos da Alma"

Saulo Soares

10/21/20243 min ler

Um matuto de botas. Assim sonhava ser, ou ter sido, ao menos. Mas, a vida lhe calçou um cromo alemão e lhe impôs uma polidez tal que tudo lhe soava higienicamente falso e pateticamente burguês. Tinha para si que não ser aquele homem simples dos seus sonhos era um “original pecado original”, uma inocência perdida de uma forma estúpida e irreversível, um estupro que lhe deflorou a virgindade da alma ainda por nascer.

Não havia consolo e isto era o seu particular inferno. E o inferno, de fato, é isso: a inconsolabilidade, o eterno remorso. Poderia comprar terras e botas e o que fosse, mas, de que adiantaria? Ainda seria o mesmo e triste homem urbano, com cifras e gráficos tatuados na medula e nas retinas.

Lembrou-se de um conto do Machado, “O espelho”. Nele, o personagem somente se via refletido quando vestido com a farda de Alferes. Consigo; o exato inverso: desaparecia ao colocar o terno, esvaía-se nas fibras do tecido como o algodão-doce se desfaz na saliva das línguas. Não enxergava saída e, nem mesmo a morte - pensava - iria lhe satisfazer o desejo.

“Vende tudo, dá aos pobres.” A frase bíblica veio de forma repentina, súbita, aleatória, no carro a caminho de casa. Estranhou. Todos os seus pensamentos invariavelmente reverberavam na sua mente com o som da sua própria voz. Era ele dizendo a ele. Desta vez, não. Foi como um ruído às avessas, como se a escuta fosse uma linguagem e o silêncio um delicado e divino idioma. “Vende tudo, dá aos pobres.”

Ruminou a sentença com os quatro estômagos dos seus lobos cerebrais durante seis ininterruptos dias. No sétimo, trabalhou. E foi um bem após o outro e, quanto mais bens ele vendia e doava, melhor se sentia. Móveis, imóveis, títulos, ações, au revoir.

Foi tido como louco. Interditado. Os mais velhos foram os primeiros a lhe atirarem pedras. E, um por um, até os mais jovens, todos à sua volta lhe condenaram. Não houve quem o absolvesse. Viu-se só.

Olhou para baixo e com a ponta dos dedos quis escrever algo no chão girando os sapatos de cromo alemão. Calçou-os e saiu. Não parou mais de sair. Partiu em diáspora da cidade em direção à roça. Quarenta dias e quarenta noites se repetiram quarenta vezes quarenta vezes.

E passou por muitas cidades, vilarejos. E viu noites como nunca havia visto. E ouviu sons que mais pareciam cores e cores que eram puras notas musicais entintadas. E falou com tantos quanto pôde. E ouviu. E descobriu gargalhadas escondidas em sua garganta, emudecidas. E acordes nos pingos da chuva e chuva nas lágrimas que chorou.

As solas do cromo alemão gastaram-se por inteiro. Largou-os ao longo do caminho. Teve fome. Bateu palmas e um “ô, de casa!” à porta de um ranchinho, de uma casinha tão branca quanto uma valsa.

O cachorro veio fazer festa, dar-lhe as boas-vindas e lamber seus pés feridos como os de Lázaro. Um homem apareceu. Deu--lhe água, comida e a sombra de um velho araçá.

E ele comeu com tanto gosto, com boca tão boa, de fechar os olhos, que brotou naturalmente, sem estilos ou afetação, um espontâneo “benzadeus” tão caipira quanto um “benzadeus” poderia ser. E, antes mesmo que pudesse agradecer, o homem lhe trouxe um par de botas, gasto, boquiaberto. E, olhando nos seus olhos, disse: “Pro amigo, matuto".

Saulo Soares é poeta, cronista, contista e compositor. Atual Presidente da Academia Literária de Piraí e Membro Correspondente da Academia Bonjesuense de Letras. Colabora, dentre outros, com o jornal O Norte Fluminense. Autor de 2 livros de poemas, Lastro (2018) e Gerúndio (2020). Em 2023 publicou, pela Editora Patuá, seu primeiro livro de Contos "O Facão e pequenos outros Contos da Alma", lançado na FLIP, de Paraty (RJ). Participante de diversas antologias, coletâneas e Feiras Literárias.

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Sapatos. Por Vincent Van Gogh.