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MEDITAÇÕES SOBRE A REVELAÇÃO - PARTE VI

Reflexões sobre a revelação divina, a Importância das escrituras e como interpretá-las segundo instrução da Igreja. Estas reflexões compõem um estudo comentado sobre a constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina.

Rafael Andrade Filho

7/14/20256 min ler

ORGANIZANDO E ENTENDENDO O TEXTO

PREMISSA MAIOR:

Todas as Escrituras são inspiradas por Deus. Essas verdades que elas contêm foram dadas por Deus de forma fiel, sólida e sem erro, com o propósito de que possamos recebê-las e nos dedicar completamente ao seu conteúdo, sem reservas.

AGORA MEDITEMOS:

Deus fala através dos homens de uma maneira humana. E esta maneira humana, muda através do tempo. Há pelo menos 3000 anos de distância do nosso mundo atual para aquelas narrativas e há convenções e costumes que não nos são familiares e que não poderemos saber do que se tratam, sem esclarecimentos históricos. Por isso, muitas vezes será necessário usar um método para compreender o que Deus realmente deseja comunicar por meio das convenções, gêneros literários e expressões idiomáticas usados naquela época em que os textos foram escritos. O contexto cultural das diferentes histórias que a Bíblia conta deve ser conhecido para que tenhamos acesso completo à mensagem divina. Este contexto é chamado de ambiente cognitivo.

Viver em um ambiente cognitivo é como estar em um rio. Um peixe que está em um rio nem está consciente do fato de que está flutuando ou nadando contra a corrente ou rio abaixo, mas também pode ficar parado e flutuar automaticamente. Nós estamos em uma cultura - em um rio - e a cultura forma os pressupostos com os quais olhamos o mundo inteiro, mas como estamos mergulhados nela, nem estamos pensando nisso. Por exemplo, as pessoas daquela época não tinham nem as palavras necessárias para descrever o que seria o efeito estufa. Não fazia parte do seu rio, do seu ambiente cognitivo, de onde poderiam poderiam buscar a imaginação, os conceitos e vocabulário necessários. Então Deus, em sua revelação, está usando o ambiente cognitivo das pessoas daquela época para descrever realidades divinas e a coisas que as pessoas nem pensavam naquela época. Portanto, devemos nos perguntar qual era o "rio" no qual o antigo Israel estava mergulhado e conhecendo-o, poderemos entender melhor a revelação divina contida nas escrituras.

Uma outra metáfora útil para pensar sobre a leitura da Bíblia é a de apreciar uma tapeçaria. Se olhássemos apenas para uma seção de uma tapeçaria enorme, pode ser que este detalhe seja bonito, mas também pode ser totalmente sem sentido. Mas ao recuarmos com uma visão para o todo, esse pequeno pedaço nos terá seu significado e sua beleza esclarecidos e ressaltados. Pense por exemplo no massacre dos inocentes. Se olharmos apenas para esta seção da bíblia ela poderia nos parecer macabra. É na perspectiva do todo que entendemos o significado das partes.

Além disso, e ainda com a imagem da tapeçaria em mente, é importante perceber que a Bíblia não é apenas uma estória. Ela é história: trata-se da narrativa de coisas que aconteceram, mas também conta a história da pedagogia divina - de como Deus ensina o homem sobre Ele mesmo - e a sua criação é em si um processo da pedagogia divina. Portanto, a bíblia não é apenas a história de salvação divina, mas é também o discurso retórico de Deus para a humanidade, enquanto Ele procura ensiná-la, para estabelecer verdades essenciais para a nossa salvação. . E assim, o processo de sua criação em si é providencial, e é em si mesmo uma pedagogia divina. Neste sentido, se a história da salvação é essa linda tapeçaria, também vale a pena ver como a tapeçaria foi criada - olhando para a parte de trás dela. Se olharmos uma tapeçaria por trás veremos o bordado e as técnicas que foram utilizadas na sua criação.

Surge então, o método crítico-histórico. Em muitos ambientes, este nome é tratado como um palavrão. Isto se justifica pelo mau uso deste métodos em ambientes acadêmicos, mas como vimos na "introdução" à Dei Verbum, a Igreja reconheceu o valor do estudo mais detalhada da bíblia, incentivando os fiéis a se aprofundarem no texto bíblico e a aproveitarem seu valor teológico e espiritual. A Dei Verbum, em 1965, finalmente diz: vão estudar a Bíblia, porque é através do estudo bíblico que Deus vai continuar a nutrir a Igreja. E precisamente porque a bíblia é a palavra de Deus e é a mensagem de Deus para a humanidade no tempo, e em um tempo específico, em uma cultura específica com suas convenções literárias específicas é que é nosso dever entender como isso se deu, porque foi assim que Deus trabalhou, no tempo, com as pessoas específicas para se tornar conhecido pela humanidade.

Mas é importante lembrar que a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o espírito de reverência e sacralidade com o qual ela foi escrita. O método histórico-crítico, se usado com este espírito. nos ajuda a mergulhar nas convenções literárias daquele tempo, permitindo-nos extrair a verdade que Deus quer nos revelar, pensando na nossa salvação. Assim, devemos prestar atenção séria ao conteúdo da Escritura e à sua unidade. Se quisermos entender corretamente o significado dos textos sagrados, é fundamental que a leiamos de forma fiel à sua essência — ou seja, com fé. Essa é a chamada “analogia da fé”: ler a Escritura com fé, buscando compreender o seu significado mais profundo. Por exemplo, ao estudarmos o papel específico dos Juízes na história da salvação, devemos compreendê-los dentro de seu próprio contexto. Ainda assim, é válido ter também a história completa em mente. É importante ler os textos de Juízes com a tradição, entendendo a narrativa de acordo com sua própria época, mas também tendo o fim último da salvação e o conjunto da história de salvação como guia.

Se a tradição nos apresenta o arco geral da pedagogia divina ao longo da história, o método histórico-crítico nos oferece insights sobre como Deus estava atuando com as pessoas daquela época, preparando-as para o evangelho que viria 1200 anos depois. Ao ler com esses dois enfoques — o global e o particular daquele tempo específico — estamos participando ativamente da história de Israel. Assim, a história de Israel torna-se também a nossa história. Todos fazemos parte dessa narrativa, porque a história da Igreja é a continuidade da história de Israel, e a Igreja é o novo Israel. No Antigo Testamento, se a Escritura fala sobre pedagogia e preparação para o mistério de Cristo, ela também narra nossa história de salvação. Cristo, por sua vez, recapitula a história de Israel, personificando-a.

À medida que nos conformamos com Cristo, somos convidados a participar dessa história de Israel. Nosso objetivo é realizar todos os ideais e propósitos presentes na narrativa de Israel, como ensinado também pelo documento Dei Verbum. Dessa forma, entender a Escritura é deixar-se transformar por essa narrativa, participando ativamente do plano de Deus para a salvação.


Texto de Rafael Andrade Filho.

Seguimos com nossa leitura comentada sobre a Dei Verbum. Para ler o estudo prévio, clique Aqui.

Leiamos agora o capítulo III, número 12:

CAPÍTULO III

A INSPIRAÇÃO DIVINA DA SAGRADA ESCRITURAE A SUA INTERPRETAÇÃO
Interpretação da Sagrada Escritura

12. Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras.

Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os "géneros literários". Com efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se trata de géneros histéricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de facto exprimiu servindo se os géneros literários então usados. Com efeito, para entender retamente o que autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então.

Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar, na investigação do reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.